Assombrações

Quem, quando criança não teve mais medo de sua imaginação do que a realidade ou fantasia que lhe apresentada, A nossa mente consegue criar sempre os piores horrores para os nossos fantasmas.

Comigo não foi diferente. Falavam-me de um diabo e eu dobrava a feiúra dele. Eu tinha seis para sete anos, morávamos em Lambari no sul de Minas Gerais. Era uma pequena e linda cidade de veraneio, na época preferida pelos cariocas. No verão e nas férias escolares de julho, a cidade era invadida por personagens fantásticas.

Com hábitos bastante diferentes dos interioranos e pacatos Lambarienses, os cariocas escandalizavam a população ordeira e religiosa, com as mulheres vestindo saias curtas e fumando nos bares. Mas, a ira dos mais velhos conservadores era aplacada pelo dinheiro que entrava.

Morávamos em uma casa ao lado do portão do Parque da Águas. Era antiga, simples com uma fachada reta, duas janelas na frente e uma escada lateral de cinco degraus que levava para a porta de entrada.

Tinham três quartos todos com portas para a sala e um vão que saia na copa. Tabuas de madeira de lei faziam o piso que só escovão dava brilho.

A copa tinha quatro saídas. Uma para a cozinha, onde localizava o “guarda comida” (um armário pintado de verde claro com telas nas duas portas e um trinco de madeira chamado de tramela) e um bonito fogão de lenha.

As outras portas da copinha eram. A que dava para o vaso sanitário e a que era do banheiro, comportando apenas uma banheira. Não tinha chuveiro. E, finalmente a porta que dava para o apertadíssimo quarto da empregada.

É dela que eu quero falar. Seu nome era Nice. Se tivesse sobrenome eu nunca ouvi falar.

Negra, de pele luzidia, dentes brancos e os olhos mais negros que a sua pele que transpirava simpatia. Sempre usando um turbante branco, imaculado, sem uma mancha, enrolando na cabeça.

À noite, depois que meu pai escutava o Repórter Esso pelo rádio na sala, que precisava de aproximadamente 15 minutos para esquentar as válvulas e começar a “chiar”. Aí começava outra luta para sintonizar o som da Radio Nacional do Rio de Janeiro. Quando enfim, tudo acertado, não se podia fazer o menor barulho.

Em alguns dias da semana ele se prolongava na escuta. Era dia do Balança Mais Não Cai”, quando ele dava boas gargalhadas ou escutando extasiado Dilermando Reis no violão ou o Rei do Baião, Luiz Gonzaga e sua sanfona de oito baixos. Nesta hora ele não agüentava e cantava junto “OÔÔÔÔ BOIADEIRO QUE A NOITE JÁ VEM, PEGA O SEU GADO E VAI PRA JUNTO DO SEU BEM!”

Antes de ir dormir, acertava o relógio do pulso e da casa pela Radio Relógio do Rio de Janeiro, que não tocava nada e nem tinha propaganda apenas reproduzia o som do tic-tac de um relógio, e um locutor que, de minuto em minuto, falava as horas em tom grave. São vinte e uma horas e doze minutos... Vinte e uma horas e treze minutos...

Depois que a casa ficava em silêncio. Então, era à hora da Nice, no canto da copa, moendo o café torrado à tarde, em uma panela própria, no formato de uma bola que tinha uma janelinha que se abria com uma alavanca.

Esta bola, cheia com grãos de café cru, girava em cima do fogo até o grão ficar no ponto certo de torra, bem escuro, enchendo a casa de fumaça e deixando um aroma de café torrado no ar inesquecível.

Esses grãos torrados, quando se queria coar um café, iam para um moedor preso a uma pedra mármore fixado na parede da copa e que se regulava a textura do pó que queria por uma borboleta na parte de traz, moendo um café mais fino ou mais grosso.

Enchia de grãos a boca do moedor e ao girar a manivela o pó ia sendo amparado em uma vasilha circular que ficava no moedor. Dali para o coador.

Nós crianças naquele momento, em volta da Nice, agarrado as suas pernas escutávamos hipnotizados os casos de mulas sem cabeças, do Saci Perêrê e de um Diabo horroroso, que se chamava Chicundum.

Esse era feio mesmo! Tinha no lugar dos olhos duas brasas que só de olhar queimava. A língua era escura, grudenta e enorme, tão enorme que descia como uma gravata e arrastava no chão.

Ele tinha preferências para meninos que desobedeciam aos pais, não tomavam banho, eram arteiros e não se saiam bem na escola. Quer dizer, ele só vinha atrás de mim.

O horroroso andava cambaleante e antes de devorar o menino ele enrolava o desobediente na língua e chupava como pirulito.

E Nice, quando queria que a gente debandasse para a cama, arrastava as unhas do seu pé no chão fazendo um ruído apavorante, dizendo: ele está querendo chegar...

E, lá ia a penca de meninos agarrados em sua perna, sem olhar para traz, colocados um a um em suas camas. Só nos restava cobrir a cabeça. e rezar, porque, ela antes de sair do quarto profetizava.

Só a reza afasta o Chicundum!

Eu passei boa parte de minha vida e até agora não vi nenhum fantasma e nem mais o Chicundum está tão feio quanto me parecia na infância.

E verdade que por duas vezes eu quase vi uma assombração. Mas foi só quase!

Vocês querem ouvir a história? Então, vamos lá!

Estava com meu irmão Luiz Afonso em Campanha no sul de Minas, no quarto do casarão de meus avôs destinados aos netos.

Campanha tinha ou ainda tem no máximo 10 mil habitantes. Tanto o meu pai quanto a minha mãe nasceram lá. Eu estava com 14 anos e Luiz com 13. A hora era adiantada. Perto da meia noite.

Isto lá não fazia muita diferença naquele tempo. Às nove da noite, ninguém mais estava nas ruas. Nos dois, sentados na janela do quarto, de cuecas, com as pernas para o lado de fora, olhávamos a cidade dormir e lembrávamo-nos do nosso tempo de menino naquela terra, como se já fossemos homens..

O nosso quarto, tinha duas camas e uma escrivaninha. Nela trecos de meu avô e alguns livros. Foi quando nos lembramos de Tia Zoraida, uma velinha de cabelos brancos, sempre de coque, que pela idade ou por alguma doença só andava amparada por alguém e não falava. Passava a maior parte do seu tempo sentadinha em uma cadeira de balanço.

Eu ia até o seu quarto e pedia para que ela me desse uns trocadinhos. Como ela não respondia então eu decidia que ela havia concordado. Ia até a sua bolsa de moedas e apanhava algumas para fazer a farra nos doces e nas revistas em quadrinhos.

Ela só me olhava com seus olhos azuis. Não me lembro de rancores. Não ficava brava. Só me olhava.

Foi nesta noite que decidimos que devíamos pagar a ela pelo dinheiro que tomamos emprestado.

Só que ela já havia falecido há uns seis anos atrás. Então, colocamos uma quantia que julgávamos como justo devolver no canto do parapeito da janela e, passamos a chamar Zoraida para que ela viesse e pudéssemos então, saldar a conta. Se por acaso ela não aparecesse, estava entendido que a dívida tinha sido perdoada.

E chamamos – Zoraidaaa, Zoraidaaa, vem buscar a sua grana.

Já estávamos desistindo e dado a divida por quitada quando tentamos mais uma vez. E chamamos a Zoraida pela última vez.

Neste momento, ouviu-se um estrondo no quarto, aumentado muitas vezes por ter o chão de tabuas de madeira e embaixo do quarto era o vão do porão.

Não sei mais descrever como fizemos. Só sei que estávamos na rua em milésimo de segundos após o barulho, de cuecas e a tremer de medo.

Olhávamos para a janela do quarto lá de longe, quase um quarteirão de distância e, tudo escuro. E agora? Como é que voltamos para o quarto?

A sorte e que um de meus tios, o Dinho, boêmio inveterado, solteiro por convicção, apareceu vindo da zona boemia. Espantou com os sobrinhos de cueca na rua e riu mais ainda quando contamos que a Zoraida esta lá no quarto para buscar a grana.

E sem muito tato, foi nos empurrando, muito contra a vontade de volta ao quarto.Entramos na casa e finalmente, com o Tio na frente, estávamos no quarto.

Estava tudo como antes a não ser por um enorme dicionário eu jazia estatelado no chão.

Ele escorregou da escrivaninha e quase nos matou de susto. No canto do parapeito da janela, nosso dinheiro continuava ainda paradinho, do jeito que deixamos.

Não foi ela que veio buscar o dinheiro. Nós é que estávamos com a mente cheia de medo, quase borramos as nossas cuecas. Mas por via das dúvidas, nunca mais a chamamos.

A segunda vez? Está bem, eu conto.

A cidade era a mesma, Campanha. Eu e Rubens (meu companheiro de aventuras) queríamos mudar o mundo. Por cima dos nossos 17 anos não nos conformávamos com nada.

Era um dia de chuva fina e fria que avançou noite adentro. Já havíamos bebido o que podíamos e não havia mais bares abertos.

O relógio da Igreja na pracinha bateu uma badalada rápida e sonora como de praxe batia para qualquer hora. Eram 23 horas. A idéia veio logo na nossa mente e quase falamos juntos.

Vamos acordar a cidade!

Vamos badalar esses sinos como se tivesse morrido o bispo. Vamos mexer com todos os ouvidos. A cidade hoje acorda antes de amanhecer, este era o plano.

Para entrar na Igreja só havia duas opções que conhecíamos. Uma, era pulando a janela quebrada na lateral e que dava em cima dos túmulos dos bispos. A outra, pela báscula da torre na parte da frente da Igreja, que não fechava mais pela velhice do equipamento.

Combinamos assim. Quando desse 23h55min, para não chamar atenção, eu entraria pela lateral e o Rubens esperaria na frente até eu abrir a pequena janela circular que ficava ao lado da torre da Igreja.

Dentro da igreja era só subir alguns lances da escada da torre onde ficava presa a corda do sino principal. Era balançar na corda com o peso de nossos corpos que o velho e barulhento sino ia berrar de tal forma que acordaria até a cidade vizinha de Cambuquira.

Depois sair e assistir as caras assustadas que viriam como autômatos atender o chamado do sino, reunindo-se na Praça da Igreja, apavorados com o fenômeno.

Pulei a grade externa, passei pelo canteiro e empurrei a velha janela que, gemendo abriu suas partes mostrando uma escuridão eterna. Sem vacilar empurrei o meu corpo pelo vão e cai sobre a lápide onde estavam enterrados os restos mortais dos bispos.

Tive que esperar um pouco, imóvel, para me acostumar com a escuridão. O cheiro de mofo era forte. Desci da sepultura e empurrei o portão da gradinha que rodeava o pequeno espaço que cercavam os mortos.

O barulho das dobradiças enferrujadas foi parecido com um grito de dor forte e doeu nos meus ouvidos. Ali eu senti um calafrio. Mas imediatamente disse para mim mesmo. Não vou ficar com medo agora. E caminhei rumo à sacristia.

As imagens dos santos me seguindo com seus olhos enormes. Em um canto havia embutido na parede e fechado com um vidro uma imagem representando o corpo de Jesus ensangüentado que, por um momento eu podia jurar que levantou a cabeça para me olhar.

Engoli em seco e rompi os dez passos que me separavam para atravessar a porta da sacristia e sair no salão da Igreja. E assim foi feito. Abri a porta enorme de madeira maciça, desci três lances de escadas passando pelo lado do altar.

Foi neste momento que minha perna travou. Eu tive a sensação de ter sentido uma respiração forte e quente soprando em minha nuca. Todo o meu sangue gelou. Com os meus cabelos em pé e o coração em disparada eu estanquei e não andava.

Queria olhar e não tinha força no mundo que virasse a minha cabeça. Quem era, não falava, só respirava com o hálito quente, muito quente.

Eu olhava para o chão e a minha sombra mexia para lá e para cá acompanhando a dança das velas que queimavam sobre as bandejas de óleo santo.

Neste momento eu olhei bem e vi a minha sombra aumentando. Pensei na hora. O trem esquisito que está atrás de mim está se aproximando e vai me pegar ou, sou eu que estou chegando perto do chão desmaiando. Não quis no momento discuti este dilema.

Apenas, precisei de toda a minha força para dar um berro que ecoou por toda a igreja, ouvi os bancos estalarem e o bater de asas apressadas dos morcegos irritados pelo susto.

Isto me ajudou a quebrar a paralisia do meu corpo. Sai correndo com toda a força que tinha e que não tinha. Atravessei fileira de bancos sem saber como. Até hoje tenho dúvidas, Acho que voei.

Empurrei com o corpo a clarabóia que o Rubens deveria entrar e cai no jardim em frente à Igreja, enrolando em uma poça de barro e água.

Eta coração bom! Ainda estava batendo. Foi ai que eu avistei o Rubens, conversando calmamente com uma menina e que não se deu conta que combinamos de entrar no mesmo horário.

Não disse nada, mesmo porque fiquei sem fala àquela noite que esperava acordar a cidade e quem não dormiu fui eu.

Depois disto só me envolvi com fantasma quando andava pelo Peru com meu amigo Luiz Renato de Araujo Silva, vulgo Zé Colméia. Nós estávamos indo rumo ao Chile conhecer a política do socialista Alende, presidente daquele país. Estávamos locomovendo a pé ou de carona. Era inverno e em alguns lugares, nevava.

Chegamos em um vilarejo e paramos em frente à Igreja. Já era quase noite e o frio de lascar.

Vimos alguns homens na frente da Igreja conversando e notamos pela veste que um era padre. Chegamos, pedimos licença e solicitamos que nos arranjássemos um lugar para dormir e que seria por só aquela noite.

Depois de algum tempo tentando nos fazer compreender, uma pessoa conseguiu traduzir o que queríamos. Eles pararam, olhando para nós até que o padre disse, apontando para um mausoléu no meio da pracinha e disse ou entendi assim o que falou: Vocês podem dormir lá!.

Aceitamos alegres, mesmo porque a noite chegou e estávamos mortos de frio. Um homem magro carregando uma vela acesa abriu o cadeado que fechava a porta de ferro vazada do mausoléu.

Descemos a escada de uns seis a sete degraus e esperamos o magrelo chegar e iluminar o local.

Era um quarto com quatro por quatro metros, de teto baixo, porque Zé Colméia que tinha mais de 1,90, teve que andar encurvado.

No meio do quarto um túmulo com uma lápide de mármore como tampa a um metro do solo. Pegamos umas roupas vestimos sobre as nossas, deitamos sobre a laje e o homem magro fechou a grade de ferro e foi embora levando a vela.

Eu e Luiz dormimos dominados pelo cansaço, mesmo com o redemoinho de vento forte, que se formava dentro do quarto, levantando folhas de jornais velhos que estavam espalhados pelo chão, fazendo com que elas batessem em nossos corpos nos acordando. Bem é verdade que nos acordou só no princípio, depois desmaiamos

De manhã bem cedo o padre abriu a porta e eu sai. O Zé ficou mais tempo arranjando a mochila.

Foi ai que com a chegada de mais duas pessoas da comunidade o Padre nos perguntou se vimos ou ouvimos algo. Eu disse que fora o vento e os jornais nada mais.

Vi os seus olhos brilharem. Vocês viram a folha de jornal bater em vocês? Perguntou afobado.

Sim eu respondi, a noite toda..

Ai o padre levantou as mãos pro céus e disse alguma coisa que não entendi. E voltando para mim me disse:

O padre que está enterrado lá, sempre faz uma previsão para todo o ano sobre a nossa colheita. O que precisa é alguém de fora dormir lá. Basta a gente interpretar a notícia no jornal que o vento vai deixar sobre o túmulo e tudo passa a dar certo para nós!

Nisso Zé Colméia que havia acabado de chegar perguntou. Um jornal amarelado pelo tempo?

Sim, falaram todos!

E o Zé com aquela calma de sempre disse: Eu acabei de limpar a bunda com ela!

Só não apanhamos porque saímos rápido e ligeiro antes que o padre chamasse toda a população.