Olhai os lírios do campo

Necessidades fisiológicas, por vezes, são inconvenientes, problemáticas e até constrangedoras.

Há situações em que o foco maior do contexto deveria inibir o foco menor; o acessório deveria obedecer ao principal, e não é o que sempre acontece.

O velório apresentava-se cercado de amigos, o ataúde cercado de familiares e eu jurando que nunca mais tomaria um diurético em toda minha vida; mesmo que isto me custasse uma explosão. No necrotério não havia uma caixinha de reclamações, por isto não deixei expresso meu protesto, pela falta de um sanitário no local. O que se depreende disto? Quem vai a velórios não sente necessidades?

Pensei em deixar tudo e voltar para casa, onde tenho o mais lindos dos vasos sanitários, confortável, limpo e que eu conheço em detalhes, sabendo exatamente onde devo ficar para atingir o alvo, sem goteiras pelo caminho. Pensando em quanto o meu vaso é útil, passei a imaginar o que eu poderia fazer para agradá-lo; quem sabe levar para casa um novo aromatizante que exala um delicioso odor cítrico, logo descartei a opção de colocar flores na privada, pois a mencionada perderia a utilidade a que se destina.

Até as lágrimas dos presentes caindo fomentavam minha vontade, num gesto sintomático cruzei as pernas, como se assim eu pudesse conter um jato mais ousado. Notei que aqueles que pretendem disfarçar uma sensação deste teor colocam no rosto um sorriso forçado, um esgar que denuncia a falsidade daquilo que realmente está sentindo. O sorriso Hebe Camargo ilustra perfeitamente o que eu pretendo aqui afirmar.

Se eu esperasse pelo sepultamento, com certeza dois corpos seriam sepultados: o falecido que nos trouxe até ali e o meu, que se encontrava nos limites da resistência física.

Sempre fui muito discreto, sempre relutei em urinar em banheiros coletivos, como clubes e barzinhos, mas naquele momento deixei de lado todos os meus escrúpulos, pudores e também saí do lado da bela viúva, para encontrar um local que me salvasse da tortura.

Andei por todo o campo santo, evitei sepulturas de pessoas muito próximas ou amigas e despejei naquela, cuja fotografia não me sugeria nada, nada me trazia à lembrança, totalmente desconhecida, mas, daqui por diante, não mais tão árida, não mais tão seca.

Inominável o prazer que aquilo me proporcionou, o que meus rins purgaram era lançado agora purgando também, literalmente, a alma.

O sorriso com que eu voltei para a sala, onde se encontrava o esquife, agora era de pura satisfação, de alma limpa (e rins também), eu teria autonomia para mais duas ou três horas, dependendo da eficiência do meu diurético.

Enfim tudo acabou, despedi-me pesarosamente de cada um dos familiares e abandonei o local, quando me ocorreu um poema de Quintana, onde afirma que triste daquele que passa pelo jardim sem ver a beleza das flores; foi quando eu pude observar que são lindos os lírios que brotam no campo santo, o que me intrigou foi imaginar a hipótese de que a urina possa ser o nutriente mais eficaz para o lírio:

Olhai os lírios do campo

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 31/07/2011
Reeditado em 01/08/2011
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