O Sentido da Vida

COLUNA MULHER EM BUSCA

Autoconhecimento, Espiritualidade, Saúde e Valores

Olhei para o rosto vincado que parecia dormir serenamente. Uma chama que se estava apagando. Era domingo. Dia das Mães. O primeiro ano, desde que havia entrado para aquela família, em que não participara de um almoço com a matriarca do clã. Talvez, penso comigo, esse fosse o primeiro de muitos outros. Ela estava-se despedindo da vida. Aos 95 anos, era risco demais operar o coágulo que se havia formado no cérebro, após uma queda inesperada. Eu era a única pessoa, naquele quarto, que acreditava na vida após a morte e na reencarnação. Todos os demais eram católicos. O que era possível estava sendo feito para que aquela vida não se extinguisse. O amor que sentiam pela mãe era grande demais. O vazio que a sua ausência deixaria aparentemente seria insuportável para uns e outros, principalmente para aquela que dedicara a maior parte de seu tempo a cuidar da velha senhora. Como seria para ela o depois? O que faria com aquele espaço em branco que haveria de ficar em sua vida? Eu olhava para ambas, mãe e filha, e percebia que um ciclo muito importante se estava fechando. Eu não tinha uma bola de cristal para prever o futuro; torcia, porém, para não estar enganada: ao contrário do que muitos pensavam, aquela filha saberia superar a perda como soubera honrar seu compromisso em vida para com a mãe.

“Eu não quero viver tanto tempo assim, diz-me uma das presentes. Não acredito na vida após a morte e, para mim, quando se morre, vira-se pó. Sou a favor da eutanásia.” A essa manifestação verbal, uma outra voz se fez ouvir. “Não concordo com esse pensamento. Acho que se deve lutar pela vida até o último instante. Ninguém tem o direito de abreviá-la.” Em apenas duas falas, posturas díspares. Quem estava com a razão? A meu ver, ambas, pois cada uma acreditava naquilo que estava falando. Esse havia sido o grande mérito da velha senhora. Conseguira harmonizar, à sua volta, os frutos de uma árvore frondosa, com muitos galhos e ramificações. Amavam-na e respeitavam-na todos - filhos, netos, bisnetos e agregados, como eu, por mais diferentes que fôssemos uns dos outros. Esse era um dos tantos temores que habitava o coração das pessoas presentes naquele quarto de hospital. Como se manteria unida, dali para a frente, aquela família com tantas diferenças entre si? Quem dentre eles seria o elo condutor a partir do momento em que a chama da velha senhora se extinguisse?

Mesmo acreditando na vida após a morte, penso ser muito difícil conviver com a ausência de alguém que foi extremamente presente em nossas vidas. Como lidar com o fato de não podermos mais olhar, tocar, falar, compartilhar com quem amamos? Mesmo que no futuro, em um outro plano, possamos vir a nos encontrar, o que fazer de nosso presente, de nossos dias, sem aquele ou aquela de quem tanto gostávamos? E foi pensando sobre isso, sobre a temporalidade da vida, que saí daquela visita. Não somos eternos, mas agimos como se o fôssemos. Agimos como se tivéssemos todo o tempo do mundo, desperdiçando oportunidades únicas de estarmos perto de afetos verdadeiros. E um dia, quando menos esperamos, podemos dar-nos conta de que é muito tarde. Em outras ocasiões, gastamos tempo e energia demais querendo impor nossos pontos de vista. Quanto desperdício, venho aprendendo. O grande barato não está em ter-se ou não razão, mas em respeitar o outro que de nós é diferente. Essa é para mim uma das regras máximas da boa convivência. Não adianta querer fugir ou isolar-se. Precisamos todos uns dos outros - e é nas diferenças que aprendemos e crescemos. O que se dirá, então, dentro de uma grande família? Se não nos conseguimos harmonizar e entender conosco mesmos, como fazê-lo com o parceiro, com os filhos e, caso venhamos a tê-los, com os netos e bisnetos?

Tenho para mim que vivemos uma crise de valores tão grande que não nos damos conta do que realmente importa. Desejamos coisas cada vez mais complexas e não percebemos que a felicidade, aquela que tão arduamente perseguimos, é feita de ingredientes simples. Levamos a vida como se fôssemos ficar aqui para sempre e não vislumbramos que estamos apenas de passagem. A ciência avança querendo fazer-nos acreditar que um dia isso será possível. Vamos ao geriatra, tomamos comprimidos, repuxamos o rosto, fazemos uma gama enorme de exercícios para nos mantermos vivos e ativos. Acumulamos coisas e fazemos projetos a longo prazo para ter a sensação de que não precisaremos ir embora. Vivemos presos a falsas conquistas e não percebemos que o tempo da viagem, da nossa viagem, é curto.

Meu coração estava em paz. A velha senhora amara e fizera-se amar. A sua passagem por aqui não tinha sido em vão. Soubera aproveitar, com sabedoria, a oportunidade que lhe fora dada. Poucos são os que chegam ao fim da vida cercados de tantos cuidados e carinho. Ela fizera por merecer. Havia deixado um grande legado. Não haveria brigas por heranças e muito menos discussões. O tesouro de sua passagem encontrava-se no coração e na mente dos que a cercavam. Que pudesse, finalmente, descansar em paz.

E a você, leitor, meus votos de que a vida, a sua vida, seja plena de realizações verdadeiras. Que a sua passagem por esse plano não seja em vão, à mercê de valores que, ao contrário do que nos querem fazer acreditar, conduzem ao vazio existencial.

Com muito carinho e um afeto sincero,

Regina Dias, escritora e palestrante, autora do livro Mulher em Busca, editoras Mauad e Bapera

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E-mail: reginadias@mulherembusca.com.br

regina dias
Enviado por regina dias em 05/07/2005
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