"...para quem tem coração!"

“... para quem tem coração!”

Como é gostoso lembrar-se dos tempos de nossa infância. Trabalhando numa loja pude conhecer muitas coisas. Mas uma que marcou foram os tecidos que vinham em grandes fardos e eram disputados pelos sitiantes para fazer cobertura de seus produtos e até roupas, chamados “carne-seca” e das pilhas para rádio que tinham o tamanho de caixas de sapatos. Elas eram vermelhas e quase sempre já chegavam à loja com uma parte desgastada. Época em que havia sitiantes que vinham à cidade para comprar sal e querosene para suas lamparinas e seus isqueiros ou “bingas”. O resto era produzido lá mesmo no sítio.

Hoje vejo sitiantes comprarem pães, ovos, alface, repolho, queijo, etc. Os seus banheiros eram as lagoas na porta da casa ou nos pequenos córregos, chamados de “corguinhos”. Havia ainda os banhos de bacia. A bacia com o tempo furava, então nosso pai pregava um fundo de madeira. A comida feita no fogão de lenha era deliciosa. O leite da vaca ou da cabrita. Os pomares com todos os tipos de frutas. A pesca feita com covos, peneiras ou anzol. Ou de loca. A linha era feito com linha de costura. Pegava bagre, taraíra, mandi-chorão, guasca, lambari do rabo vermelho, cadela, etc.

Vem à lembrança os colchões enchidos com palha de milho. Onde as pulgas se aninhavam e se não fosse o pó-de-broca... As gostosas “moranguinhas” adquiridas no chiqueiro. Os barulhentos pernilongos...

As crianças ficavam esperando o Natal, quando o pai pegava a carroça e ia buscar um engradado de caçulinha para eles e um garrafão de vinho, na cidade. No Natal a gente ficava medindo a guaranazinha com os irmãos ou primos, para ver quem demorava mais para beber.

Os nenéns usavam chupetas coloridas até os nove anos. E ainda um pano velho que era chamado de “cherosinho”. Depois tomavam mamadeira em garrafas de refrigerantes ou vidros de Biotônico Fontoura com uma chupeta na ponta.

Todos dormiam cedo. A pegada no outro dia era seca. Arar terra, fazer cerca, cortar capim, trançar cebola, etc.

As moringas tinham que estar sempre cheia com a água pura da bica. Tinham que socar milho no pilão para fazer quirera para os pintinhos. Ou senão fazer sabão de cinza. Quando o pai matava porco era gostoso assar um pedacinho na chapa. E depois armazenar nas latas de querosene vazia aqueles pedaços deliciosos. Ou ainda fazer uma bola com a bexiga para jogar futebol. E lá iam jogar no campo da fazenda. Onde o campo era torto e um goleiro não via o outro.

Quando ia às novenas na capela à noite, ou na casa dos vizinhos, os meninos corriam na frente, no escuro, para amarrar o capim do caminho para derrubar as meninas. E ainda caçavam vaga-lumes, cantando: “vaga-lume tem-tem, teu pai tá aqui, tua mãe tamém!”, e as mães gritavam: “Num põe as mão no zóio!” Depois a vizinha vinha com uma caneca quase rachada de café, adoçado com açúcar preto, ou um prato de doce de mamão enjoativo, se falasse que gostava ela colocava mais. E vamos cantar: “Avê, avê, ave Maria!”

Tinha o “cumpadi” mentiroso que dizia que já tinha visto “Lobisome”, mulas sem cabeça e que sempre desconfiava de um “véinho” que passava por lá. Havia um amigo nosso que chamava o pesadelo dos sonhos de “pisadera” e pensava-se que era assombração. Nós ouvíamos rádio. O Zé Bétio era o principal. Eu gostava de ouvir uma novela na Rádio Bandeirantes, chamada “Jerônimo o Herói do Sertão". A Lua era linda. No calor a gente fazia uma roda e ficava até tarde contando histórias. Brincava de pique. Cobra-cega. Fazia figuras com o mamão verde ou porunga. Onde se punha uma vela para assustar os outros.

Quando a gente ia para a escola, às vezes, levava pão com banha ou doce de abóbora, quando tinha pão. Nossa borracha era feita com tampinhas de vidro de remédio. A tinta saía do tinteiro e manchava todo o bornal ou o nosso guarda-pó. Era normal levar para a professora uma fruta e uma vara de marmelo. Mas sempre tínhamos muita saúde e éramos felizes e não sabíamos. Lembrar é fácil para quem tem memória, esquecer é difícil para quem tem coração.

Joaquim Távora, 2 de agosto de 2011. Copyright by Theo Padilha.

Theo Padilha
Enviado por Theo Padilha em 02/08/2011
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