A bulha na ABL

Wilson Correia

Minha filha ama o avô materno que ela tem, de mais de noventa anos. E, em uma conversa que mantivemos, de pai para filha, sobre vida familiar, fiz referência a algo mais ou menos assim: “O ciclo de vida se inicia com a infância e termina com infância” (será que ainda chego lá?). Espero que ela tenha entendido meu recado...

Agora, a Academia Brasileira de Letras (ABL) brinda-nos com uma querela (rixa) entre dois distintos, insignes, ilustres, notáveis, não ignotos (tudo isso significa “destacados” -pela idade, acho!) de seus membros.

O que eles têm em comum são os números de suas idades em posições trocadas: um, 78; outro, 87 (aqui, parece que quebrou a eufonia, caiu na cacofonia... viximaria... pioreceu tudin...).

O mais vivido aí ficou abespinhado, agastado, amofinado, amuado e exasperado (isso tudo quer dizer “zangado”) com o mais jovem deles. Motivo: o agastado aí diz ter ouvido no auditório da ABL, justo quando conferenciava sobre Gonçalves de Magalhães, 25 minutos ininterruptos de ganidos, gemidos, vagidos, coaxos, grasnidos, uivos, ladridos, miados, pipilos e arrulhos intoleráveis (isso tudo de um ex-ministro da educação e que, trocando em miúdos, quer dizer “conversa paralela”).

Então, em uma reunião posterior, o exasperado sacou uma carta e a leu para o público, na qual nomeou o insolente (grosseiro) que se deu a cavaquear, linguajar, linguarejar, matraquear e a palrar (conversar paralelamente) de macilento boquirroto (cadavérico falador).

Na carta lida há outros vetustos (antigos) termos que talvez caibam à ancianidade (velhice). Trata-se de uma pérola! Talvez valha a pena lê-la na íntegra para notar como se faz uma espinafração (uma palavra que pode significar tudo isto: descompor, mangar, ridicularizar, troçar) e como se passa uma descompostura (igual a: desalinho, desarranjo, insulto, reprimenda, desanda, censura acrimoniosa, ou, simplesmente, nosso popular “puxão de orelhas”) entre nobres letrados de nossa ABL (aquela que, em lugar de promover as letras e a educação, recentemente condecorou um jogador de futebol que não tinha sequer um livro preferido).

Penso que agora entendi tudo. Além disso, ganhei um exemplo de caso concreto para repassar à minha filha sobre como, na senescência, podemos nos ver em um misto de infantilidade senil.

Ou seria senilidade infantil?

Em tempo: “bulha” significa “contenda”, “disputa”... “barraco” mesmo. Ah... nesse caso, também andam falando “bafão”, o que dá no mesmo que “bulha”.

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A carta do abespinhado

"Sr. Presidente,

Senhoras Acadêmicas,

Senhores Acadêmicos,

Nesta Academia, como em todas as corporações que se regem pelas normas da civilização, da boa educação, da polidez e da conviviabilidade, o silêncio do auditório, durante a fala de um dos seus integrantes, é um princípio pétreo.

Esse princípio, Sr. Presidente, foi vulnerado quinta-feira última, quando eu estava falando sobre Gonçalves de Magalhães.

Durante 25 minutos, este auditório ouviu, ininterruptamente, ganidos, gemidos, vagidos, coaxos, grasnidos, uivos, ladridos, miados, pipilos e arrulhos intoleráveis, senão obscenos, de um macilento boquirroto ostensivamente deliberado a tisnar e perturbar a minha exposição.

Momentos antes, Sr. Presidente, V. Exa. exarava o seu zelo por esta Casa versando sobre a quilometragem exorbitante de um dos táxis que servem aos acadêmicos do plenário e que, em seu alto juízo, golpeava as burras fartas desta Academia, a mais rica do mundo.

Esse zelo, que é louvável, ou extremamente louvável, se cingiu na sessão de 5. feira última, a um inquietante item monetário, e não voltou a florescer quando um dos mais antigos integrantes desta Casa discorria sobre Gonçalves de Magalhães.

Entendo que era dever inarredável de V. Exa. impor então ao auditório o silêncio de praxe, exercendo plenamente a sua Presidência.

Esse entendimento, aliás, não é só meu --- mas ainda o de outros companheiros que, finda a sessão, e ao longo da semana, estranharam a omissão, leniência ou tolerância de V. Exa.

Houve até companheiros que me externaram a opinião de que eu deveria ter suspendido a minha palestra, já que ela fluía num ambiente toldado pela enxurrada de grasnidos a que já aludi.

E não posso nem devo esconder que outros confrades, apreciadores das soluções surpreendentes ou belicosas que quebram a monotonia da vida e das instituições me interpelaram, surpresos, desejosos de saber onde estava a minha alagoanidade, que não se manifestara.

A todos esses companheiros fiéis à tradição de urbanidade e conviviabilidade desta Academia, onde estou há 25 anos, expliquei o ter lido o meu texto até o fim.

Deus, em sua infinita generosidade, assegurou-me, aos 87 anos, o timbre de voz de minha juventude.

Não pertenço à raça dos velhos trôpegos que, com voz de falsete, emitem arrulhos indecorosos em ocasiões em que a decência reclama o ritual do silêncio.

Mas a razão decisiva que me levou a não suspender a minha palestra é outra. Além de ter mantido em mim a voz de minha juventude, Deus me aquinhoou com o sentimento da misericórdia --que é a compaixão suscitada pela miséria alheia-- e da piedade, que é dó e comiseração.

Confesso, Sr. Presidente, que me confrange o coração assistir ao penoso espetáculo dos que, alcançada a velhice, ostentam em seu trajeto os sinais indeléveis e quase póstumos da decadência física, mental e moral aceleradas, e mesmo amparados por bengalas astutas rastejam nos salões, corredores e auditórios tão lastimosamente, com os olhos mortiços fixados no chão, como se temessem resvalar em uma cova aberta.

Há velhos que não sabem envelhecer e, desprovidos da alegria e do amor à vida, e do emblema do convívio, destilam ódio, inveja e despeito, porejam calúnias e intrigas, bebem o fel do ostracismo e da obscuridade.

Há velhos que procuram enganar-se a si mesmos, pintando os cabelos, embora as florejantes e fartas cabeleiras antigas já tenham sido devastadas pela sabedoria ou impiedade dos tempo (sic), que as converte em insidiosas relíquias capilares.

Esses velhos enganosos e enganados, o padre Manuel Bernardes os estampilha de ‘tintureiros de si mesmo’ (sic).

No episódio em pauta, o uso imoderado dessa tintura, ou pintura, para esconder o inescondível e disfarçar o indisfarçável, casa-se com a boquirrotice provocadora.

Mas, tintureiro de si mesmo e boquirroto, esse personagem bizarro merece e reclama, de nossa parte, não um ato agressivo ou belicoso, ou alagoano, mas a muda expressão dessa piedade e dessa misericórdia que devem habitar sempre os nossos corações.

Encerro esta palesta (sic) com um verso de Lucrécio: ‘É doce envelhecer de alma honesta’.

Deus guarde V. Exa. Senhor Presidente, e os demais integrantes desta Casa.

Tenho dito."

Fonte: http://palavrastodaspalavras.wordpress.com/.