PALAVRA DE CAÇADOR
– Bicho sonha? Instruído leitor, pelo nível da pergunta você não precisa ler as peripécias detetivescas do Sherlock Holmes, na enfumaça Londres de dois séculos atrá: "– Elementar, meu caro Watson!" Tampouco assistir os movimentados filmes com Sean Connery, o 007, espião a serviço da rainha da Inglaterra: "– Bond. Meu nome é James Bond!"... Logo deduzindo que ela foi feita em ambiente descontraído, ao som de viola caipira, numa mesa de bar pontilhada por garrafas, copos e pratos de tira-gostos, obviamente rodeada por quatro sujeitos desocupados, que contavam piadas e riam felizes na companhia glamourosa de mulheres bonitas!
Somados os 5 graus de teor alcoólico da cerveja, aos 17 da cachaça, mesmo esforçando não consigo lembrar quem quis saber se bicho sonha. Na verdade, a pergunta fora desculpa esfarrapada para espichar a madrugada ou atrasar a saideira, empatando a cozinheira, de quem perdi a conta das vezes que relanceara a cabeça na janelinha – onde passavam os comes e bebes –, avaliando nossa tontura. Pelas faíscas no olhar ela desejava acrescentar ao menu, alguma poção que nos provocasse disenteria braba – obrigando os riquinhos metidos a pegarem o caminho de casa, o quanto antes! Então, alguém da turma arrotou convicto: – Claro, pô! Cachorro sonha!
Em prova da inusitada afirmativa, o bebum emendou o caso de um cachorro danado de bom, que o velho Juca Rufino – caçador afamado – e dono da fazenda Santa Rosa do Picão, contava. Afinal, na sua matilha havia um certo Japi – que só faltava latir em francês! E apesar do nome boioloso, era cão muito macho! Daí, sentando com uma perna cruzada sobre a outra, o sô Juca pontificava pachorrento: – Cachorro caçador tem de ter nome abreviadinho (olha o bichinho insinuate!), senão a gente estuma ele pra uma banda e o diacho pega rumo ao arrepio de onde a caça esteja amoitada!
Solidário ao compadre Juca na questão dos nomes, mesmo não sendo aficionado em campear por brenhas e esconsos – atrás de bicho de pena ou de couro –, meu avô Guilhermino, companheirão naquelas prosas que se encompridavam do quilo do almoço até sol entrando, sem untar a cara no óleo de peroba desenterrava a estória dum vira-lata, esquecido por comitiva boiadeira no seu curral. Não lhe conhecendo o nome, ficou o cachorro batizado pelo do tropeiro: – Florisvaldo! Assim, grandão. Pois caso lhe dessem apenas a primeira parte: ‘Flor’ – se comprometia a cãozência do bicho; piormente ficando a segunda: ‘Valdo’, que num grito perigava se ouvir veado!
A cozinheira do bar havia posto as vassouras, com o facho para cima, atrás da porta, simpatia infalível que devolve visita indesejada de retorno pra casa – e nada! Os garçons, apagadas as lâmpadas do salão, empilharam cadeiras sobre as mesas vazias... e nenhum dos fregueses retardatários atinou com o pedido final “traz a saideira e a conta!”. Se bicho sonha, nem Sherlock nem Bond descobriram, mas o velho Juca Rufino, sem pigarro na garganta ou orelha ardendo, contudo invocando o testemunho de São Francisco, afiançava que o Japi não apenas tinha sonhos, como até delírios! Madrugada velha, curiango agourento na cumeeira, o cachorro negaceava pelos cômodos da casa, de olhos fechados, desentocando aqui um bando de perdizes, atrás de moitada; levantando acolá um veadinho campeiro, em fundo de grota!... Por detalhes desse porte é que fica difícil dar crédito a conversa de caçador, pescador, cronista...
*** Crônica dedicada ao Geraldinho do Engenho – meu ‘padrinho' no RL.