Contrastes numa fria madrugada

Minhas dores físicas me despertaram numa madrugada fria, fora de época. Cansado e com muito sono, mas com uma canção na mente, passei a assistir a um concerto beneficente ocorrido na Inglaterra, ao anoitecer do século passado, idealizado por Sir George Martin, lendário empresário dos Beatles, em prol da obtenção de recursos financeiros para ajudar a socorrer a população de uma pequena ilha caribenha, assolada por um desastre natural.

A erupção de um vulcão adormecido há mais de quatrocentos anos destruiu grande parte do seu território, levando o seu povo a viver em péssimas condições.

A Ilha de Montserrat inspirou durante várias décadas, os músicos participantes desse encontro voluntário e fantástico que somente tomei conhecimento acidentalmente, e graças à evolução tecnológica dos dias atuais, em áudio e vídeo, o DVD, tornando-me objeto do seu principal propósito, o de informar ao mundo a necessidade de estender a mão àquele povo simples e acolhedor. Sou duplamente feliz, em conhecer o espetáculo e poder colaborar, ao adquirir, legalmente, essa gravação, pagando pelos direitos autorais revertidos à causa.

Lá, na Ilha de Montserrat, o mesmo idealizador desse evento, construiu e manteve um notável e bem montado estúdio para gravações musicais, deixando-o a disposição dos artistas. O “Stúdio Air” em Montserrat foi também destruído pelo Vulcão.

Todos aqueles que puderam, e conseguiram se apresentar, pois alguns já “partiram”, os tão criticados "loucos cabeludos", que se drogavam, mas que se refugiavam e se inspiravam com a ajuda da beleza natural daquele lugar, aparecem na gravação. Uns já grisalhos, outros até mesmo carecas, inclusive os que estão em perene recuperação da dependência química, uma de suas tragédias particulares, porém com uma jovial disposição de quem parece não ter se apercebido do passar do tempo, fizeram “barulho” suficiente, emocionante e pacífico, justamente com o produto dos seus eventuais isolamentos na Ilha, a música, despertando o restante do mundo para uma realidade bastante dolorosa.

Todos eles, sem exceção, tiveram a oportunidade de gravar a sua arte no quase desconhecido Estúdio, tais como Phil Collins, que interrompeu a sua carreira, em função da surdez e ainda colabora com diversas instituições de caridade; Mark Knopfler, que por não dispor de dinheiro para comprar uma simples “palheta” no início de sua carreira, até hoje toca com os dedos calejados, a sua guitarra que já o consagrou o melhor do mundo, por algumas vezes; Eric Clapton, que perdeu seu filho pequenino ao despencar do próprio apartamento, e mantém uma Comunidade Terapêutica, para a recuperação de aproximadamente três mil dependentes químicos, numa ilha cuja metade foi comprada com o resultado do leilão de uma de suas guitarras; Sting, que não mediu esforços ao abraçar a causa indígena brasileira, levando pelo mundo afora o Cacique Raoni como representante de um problema que teve início há quinhentos anos; Elton John, que comoveu o mundo com uma canção dedicada à princesa Diana, e antes que conseguisse apresentar apenas três músicas do seu vasto repertório, uma delas feita em duo com Luciano Pavarotti, precisou levantar-se algumas vezes para agradecer a platéia que o aplaudia de pé incansavelmente; Paul McCartney, ex-Beatle, que dispensa comentários, além dos demais expoentes artistas do “rock romântico” e, dentre as obras apresentadas, uma dizia “então posso (ou podemos) começar a fazer o melhor ...”, ou algo do gênero; enfim, os outros artistas, inclusive Arrow, nativo de Montserrat e também vítima da erupção, cuja música lembra um pouco o nosso ritmo latino, todos muito bem acompanhados por uma afinadíssima Orquestra Filarmônica, como também um esplêndido e avantajado coral, composto em sua grande maioria por cantores da raça negra, cuja voz é invejável por qualquer “cara-pálida”.

Ou seja, uma confraternização espontânea e muito bem organizada, onde predominou a alegria dos músicos de pelo menos três continentes, brancos, negros, loiros, irmanados na simples e única boa vontade em não só ajudar materialmente o povo de uma nação, mas principalmente em chamar à atenção, todo o restante do mundo, para uma realidade desconhecida para muitos e esquecida por muitos.

Suas canções, que alegraram e comoveram a platéia composta até mesmo pela Realeza daquele rico país, e que provavelmente continuarão a alegrar e a comover gerações emergentes e futuras, exibidas no estilo simples das estrelas, vestindo jeans e calçando tênis como se estivessem ensaiando nas garagens de suas casas, como no início das suas atividades artísticas, tomaram uma forma audível peculiar, tanto pela sua própria beleza e bom gosto que marcaram uma era, como pela felicidade estampada em suas faces por estarem ali motivados apenas pela pura vontade de ajudar, isentos de qualquer obrigação oriunda de contrato, cada qual arcando com as suas próprias despesas.

Um dos maiores exemplos de solidariedade, fraternidade e amor ao próximo que já assisti na minha existência, através da arte, mesmo sendo uma gravação.

Profundamente comovido, engoli em seco, quando tentei imaginar algo semelhante acontecendo no nosso imenso País, com os nossos próprios, inúmeros e grandes artistas, seus talentos, beleza e riqueza musicais, reconhecidos em qualquer parte do mundo, no nosso rico idioma, diverso pelas características de tantas regiões e diferentes culturas, com a nossa própria platéia e em prol do alívio das nossas próprias desgraças, tais como a fome, a miséria, a falta de saúde e educação, a desigualdade social e a desonestidade.

Aqui mesmo, no Brasil ! Em socorro de nós mesmos, onde temos espaço de sobra para nos abrigar no caso de uma hipotética erupção vulcânica, bem diferente de uma Ilha do Caribe aonde o lugar mais próximo para se abrigar seria o Oceano Atlântico, ou seja, dentro d’água ... em nosso solo fértil sustentado por um subsolo rico, na nossa própria “terra em que se plantando tudo dá”, segundo foi escrito na primeira correspondência despachada do Brasil, na época em que teve início o esbulho de uma riqueza que há muito já se transformou em propriedade daqueles que se locupletaram do que nos pertencia, como os diamantes que financiaram grande parte da histórica Revolução Industrial, transformando o mundo e modificando a humanidade. A terra que acolheu os nossos antepassados, imigrantes voluntários ou não, que com o custo de vidas humanas ao longo de cinco séculos determinaram as fronteiras de uma “ilha” com dimensões continentais e isenta de vulcões “naturais”, fronteiras imensas por onde continua o “vazamento” de tudo o que é nosso de fato e de direito, além da entrada e da permanência dos mais nocivos exploradores, endossada, ou até mesmo a convite de quem, algum dia, cometemos a insanidade opaca e enganosa, ao passar uma procuração com poderes de, em nosso próprio nome, construir “vulcões” e toda a sorte de catástrofes artificiais, fruto da cobiça desenfreada, em conluio com nações ricas e em detrimento do nosso empobrecimento cada dia mais célere.

Um espetáculo musical dentro de um espetáculo natural, de onde com toda a certeza os nossos menores e maiores artistas nunca precisaram sair em busca de suas inspirações, tamanha a fartura de cenário e beleza naturais, propícios ao incentivo de criações sonoras, visuais, táteis, olfativas e degustáveis ...

Fartura ainda suficientemente capaz de imaginar uma utopia, a de salvar uma espécie humana única, inexistente em qualquer outro lugar do planeta, que por sua miscigenação das diversas raças, deriva um poder de criatividade sem limites, sem fronteiras de espaço ou tempo, e sempre que aplicada às artes ou às ciências de forma positiva, o nosso grande “show” jamais teria fim e haveria, obrigatoriamente, de ser gratuito !

Mas, convenhamos que, perante todos os fatos que temos tomado conhecimento atualmente, provenientes daqueles “procuradores” que jamais poderiam merecer a nossa confiança, traidores exemplares, certamente não motiva e nem comporta tamanho acontecimento festivo, ainda que beneficente e a nosso próprio favor, mesmo porque se houvéssemos de contribuir com um centavo sequer, não teríamos a quem confiar o produto do que fosse apurado !

Assim, resta-me tão somente passar madrugadas frias, acordado sob a emoção de músicas na sua universalidade, escrevendo desabafos, parara não perder a esperança de um futuro mais significativo e promissor, até surgir uma oportunidade de cantar: “então posso (ou podemos) começar a fazer o melhor ...” •

Por Alexandre Boechat,

Em 14 de Dezembro de 2006.

Alexandre Boechat
Enviado por Alexandre Boechat em 14/12/2006
Reeditado em 14/12/2006
Código do texto: T317609
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