OS TOMBOS

O telefone tocou e era ela, um pouco mais cedo do que de costume:

- Pai, venha me buscar. Sua voz dessa vez parecia melancólica.

Há alguns dias tem sido essa a rotina. Logo à noitinha minha filha me pede para levá-la na casa de amiguinhas, e depois me liga mais tarde para buscá-la. Tem apenas doze anos e como pai zeloso, fico apreensivo, mas sempre ligado no que possa estar aprontando nos seus passeios essa pequena adolescente. Presto atenção nas amiguinhas, observo que são meninas – todas da mesma idade – de boa família, boa formação moral. Mas num mundo onde o apelo das drogas e sexo muito cedo é tão crescente, onde o risco de marginalização de nossas crianças é grande e assustador, os pais não podem ficar sossegados.

E assim vou buscá-la todas as noites. Entretanto desta vez achei estranho por ser ainda nove horas da noite (eu a busco as 10:00h) e pela tristeza na sua voz. Por ser perto, nem deu tempo para pensar muito nisso e quando cheguei, vi que realmente algo estava errado. Amanda despediu-se das amigas e veio chorosa em minha direção. Apresentava um hematoma enorme no supercílio. Mostrou me também lesões na perna e na barriga. Sofrera uma violenta queda ao correr brincando de pega-pega e batera forte a cabeça.

Assustado, pois o rosto já estava bastante inchado e sangrando um pouco, tomei imediatamente o rumo do hospital, temendo uma fratura mais grave. Minha filha reclinara o banco do passageiro, e se deitara. Seguíamos calados, apenas lhe perguntei como aconteceu, se doía muito, ao que ela relatou rapidamente e disse que a dor era forte. Em seguida calou-se.

Ora! pega-pega, pensei, quem diria que elas ainda estivessem praticando uma brincadeira tão infantil.

No silêncio do trânsito noturno, passei a viajar então pelos meus pensamentos, considerando que esse tipo de acontecimento certamente me deixa atordoado justamente por ser insólito. Minhas preocupações nesses últimos dias têm sido outras. Minha garotinha está naquela fase de transição que costuma tirar o sono dos pais: Hormônios aflorando, corpinho adquirindo formas; Está ficando mocinha.Logo vai querer arrumar um namoradinho e eu não terei como evitar, pois acho que não tenho o direito de interferir em seus sentimentos. Apenas deverei ficar atento e tentar evitar que se machuque. No coração dessas mocinhas existe uma sementinha pronta para germinar, é inevitável. Ainda tem o risco de querer buscar nas ruas as respostas aos seus questionamentos. No afã de saciar sua curiosidade podem surgir pessoas mal intencionadas que atrapalhariam o seu caminho.

E o que um homem de bem quer da vida a não ser a felicidade dos filhos? Essa fase, todos sabem, é determinante para que uma criança adquira o discernimento necessário para fazer suas escolhas durante toda a existência neste plano terrestre. Um passo mal dado na vida pode significar um preço atroz a ser pago.

Infelizmente, nessa idade existem muitas garotas que já são mães, ou que se drogam e se prostituem, crianças ainda que graças às circunstâncias cruéis em que são criadas, muito cedo se marginalizam. Não dá para não sentir um aperto no coração ao ver tamanha brutalidade. Pequenos botões privados do seu direito de desabrochar, por serem pisoteados sem piedade.

Voltei a atenção a Amanda no banco ao lado, quieta e machucada. Não deve ser nada mais grave, pensei, todos levamos tombos na nossa infância, muitas vezes sem o conhecimento dos pais e saímos apenas com um ou outro arranhão. Acho que de alguma forma, para cada criança, Deus coloca um anjo que fica o tempo todo a protegendo dos perigos. E se alguma coisa mais grave acontece é porque Ele assim o permitiu com algum propósito. Lembrei que na infância trepava nas árvores altas, mergulhava em rios desconhecidos, corria muito e caía muitas vezes sem conseqüências mais graves. Os tombos nos fazem crescer. Se uma criança cai, fica precavida e procura se aprimorar para não ter que sofrer novamente a dor da queda.

Assim também somos nós. Quantas vezes, após os baques levados durante a nossa vida, por descuido, negligência ou imperícia, passamos a prestar atenção em detalhes que até então não eram percebidos. Após um negócio mal feito, um relacionamento desastrado, um erro grave nos nossos planos, passamos a refletir melhor. Assim lapidamos nosso caráter diminuindo sentimentos nocivos como o orgulho, o egoísmo, e exercitamos a humildade. Evoluímos com os tombos.

Minha filha ainda tem um longo caminho a percorrer. Haverá muitas barreiras para ultrapassar. Muitas pedras, percalços e desenganos. Peço a Deus que a abençoe e a ampare em sua jornada e quando chegar a hora, que ela esteja fortalecida. No momento eu não vou ficar apreensivo por causa de um simples tombo.

Que bom meu Deus! Minha menina ainda brinca de pega-pega.

Ademir Silva