Das ist mein Leib

O quarto de hotel todo feito de impessoalidade, só é mais suportável porque se pode partir. Então fecho os olhos e já me imagino em qualquer lugar menos bege, menos padronizado, menos feito de fantasmas de todos que já estiveram ali.

Penso em ligar para dizer alguma coisa a alguém, mas deixo para amanhã, porque a mala espera para ser feitas mais uma vez. Não posso me esquecer do Eau Sauvage que me acompanha desde os 17 anos, encarnado em dezenas de frascos de 50 ml. É a única coisa de que faço questão. O resto, poderia até ficar para trás, já que não me diz nada de útil.Não torna minha vida um pouco menos amarga.

Penso em Juliana e o que estaria fazendo agora. Será que ela se lembra de me ter apresentado o perfume que me acompanharia a vida inteira? Será que pelo menos ela está ainda viva?

Malditos estranhos. E todos se tornam estranhos depois que se afastam. Depois que refazem a trajetória da caminhada e somem. Como se nunca tivessem chegado. E como se nunca tivessem partido. Assim como essa Eleanor Rigby que os Beatles insistem em perpetuar na minha cabeça. Quase posso dizer que a conheço, a ponto de sentir pena de sua solidão. Mas como pode ser isso? Invenções de um quarto de hotel, feitas para enlouquecer, para fazer o tempo se arrastar como um paquiderme doente.

Preciso fazer a mala. E preciso me lembrar se já amei algum dia. Se já fui corajoso, se a respiração instável pareceu normal. Mas não posso me alongar nessa experiência tola que é tentar parecer mais humano, só porque confundi uma tentativa desesperada de continuar vivo parasitando alguém, com um amor diagramado e editado numa revista de senhoras cujo dia é preenchido com frustração e anti-depressivos.

Ao que parece, lá fora, a civilização acabou. E só consegui colocar uma peça de roupa na mala, um par de sapatos que em breve será arremessado o mais longe possível e minha revista Vogue. Meu catálogo de impossibilidades.

A insuficiência verbal, barra o pensamento até o instante que pego o telefone e tento ligar para alguém. Mas que palavras certas sairiam do outro lado, com quem falo. E antes que alguém possa ao menos imaginar que liguei, eu desligo. E se você não pode me ver, também não pode me julgar, por dizer as coisas menos geniais e menos instigantes do mundo.

Todos os dias parecem exatamente esse exato momento. E o que sinto é tão estéril...Olhando para a mala semi pronta, para a TV desligada, para aquelas moedas do criado mudo...para mim mesmo em frente ao espelho, com o cabelo despenteado, olheiras, fracassos, pequenas alegrias, pequenas maldades. Me sinto mais nu do que jamais estive. E se você pudesse me ver?

Parece que meu mundo é feito de compartimentos calculados num relógio. E é ele que me diz que daqui a pouco tenho de sair. O sapato me aperta o pé. Me incomoda terrivelmente. Mas quem me vir andando, terá a impressão de que sou a pessoa mais segura do mundo. Só o meu perfume é de verdade. Só ele traz um pouco de paz com seu amadeirado esquisito. Como se eu estivesse numa floresta ressecado, minutos antes da neve cair.

Eu me levanto como que bêbado, para fechar a mala. Depois de tudo organizado, fica um resto de mim em cada canto. Um pouco da minha inexistência em cada fresta.

Ajeito o paletó, coloco a máscara com que saudarei o mundo lá fora, e acendo mais um cigarro. Que uso para morrer um pouco, sem culpa e com alguma elegância herdada da é poça dos cavalheiros. Sua fumaça vai sucumbindo lentamente à minha ansiedade. O que será que há lá fora? O que será hoje?

Não há mais tempo. As divagações de um perseguidor deverão ficar para o próximo quarto. Para os próximos fantasmas que ficarão alguns dias comigo.

Eu apago a luz, arrasto a minha mala até a porta e olho para o celular novamente. O número continua lá, esperando para ser discado. Eu digo não. Esse momento deve ser feito apenas de Adeus. Como o de Eleanor Rigby.

A porta se fecha atrás de mim. Dalí pra frente, não faço mais idéia do que será...