Muitas Coisas Numa Só

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Só o prefácio do livro sobre a história da Pixar transmite ao pretenso escritor um misto de alegria e inveja. Alegria perante um texto tão bem escrito. Inveja vem depois, seguida da pergunta fatal: por que é que eu não escrevo assim? Colega, não se iluda, o mundo é dos nerds. Se você acha que na juventude esses caras estavam fazendo ponto em tabernas, gritando em arquibancadas, quebrando vitrines ou pernoitando nas primas se engana redondamente. Eles andavam com a cara afundada nos livros e concluíram que, para chegar aonde queriam, naquela época, não havia um caminho a seguir. Eles tiveram de inventar o caminho. Steve Jobs (Apple) é um dos sócios e, em 84, ele comprou a Lucas Films exatamente para que a mesma servisse de laboratório desenvolvedor de ferramentas à rapaziada que começava a construir mundos a partir do pixel. O outro sócio (são três sócios) conta que teve uma infância inesquecível numa cidade média do interior estadunidense, um local onde inexistiam grandes problemas pelo simples fato de não existirem pessoas muito ricas ou muito pobres. Pronto, com palavras nada rebuscadas ele definiu o drama de todos os tempos – extremos.

No bairro da Vila Mariana, em São Paulo, crianças entre 9 e 12 anos, meninos e meninas, aterrorizam das 8 da manhã até altas horas, pobreza para eles seria um estágio de resignação, sendo animalesca a sua condição real. Leia os relatos dos mercenários de além África, na página xis há a descrição sobre o significado de se deparar com uma criança armada e disposta a tudo. A despeito do fuso continental, ambas estão localizadas em extremos. E são crianças. Cassius Marcelus Clay, também conhecido por Mohamed Ali, peitou uma briga feroz com a maior máquina judiciária da história moderna, nosso Big Brother USA. Motivo: ele disse para as câmeras que não iria empunhar um fuzil para matar pessoas pobres do outro lado do mundo (leia-se Vietnã). Resumiu o assunto do modo mais franco possível.

As crianças da Vila ainda não estão armadas, todavia, depois do noticiário do último domingão, paira no ar, mesmo que ninguém diga com todas as letras, uma sombra de péssimo augúrio cuja base se encontra na lógica dos fatos apresentados. Há algo em curso, e esse algo, nada que possa ser caracterizado como benéfico, ainda por cima é progressivo.

Para quem gosta de números, 50% das crianças em orfanatos, no Estado de Goiás, são filhos de dependentes químicos, ao passo que 75% dos acidentes de trânsito envolvendo vítimas fatais são derivados do consumo abusivo de álcool. Na grande pizza brasileira essas são apenas duas fatias auto-multiplicadoras. Basta pensar um segundo. Com outro segundo e por outras vias chegamos na epidemia de magistrados assassinados, nos piratas de Manaus e nas zonas de lei abaixo de zero no próprio Amazonas e no Pará, nos fóruns saqueados do Maranhão, na criminalidade surreal do Nordeste, na fantasmagórica São Paulo com 8 casas assaltadas por dia, no Rio das variadas manchetes, nas meninas presas a granel em Porto Alegre, em virtude do tráfico, ora, o que é que faltou no noticiário do último domingo, além dos gols da rodada, ácaros?

Mudando de alhos para bugalhos, a Universidade da Luz (Uniluz) continua ministrando os cursos de Psicologia TransPessoal e Comunicação Não Violenta, já que alguém, nesse mundão, tem a grata missão de nos brindar com aperitivos além da vulgar mesmice.Veja um dos textos institucionais da Uniluz: "Tudo o que existe flui da Fonte da Sabedoria Divina. A sabedoria surge no coração que se abriu para compreender e transformar apegos e dúvidas na certeza de que podemos ter e saber tudo o que necessitamos quando nos conectamos com a Alma. É possível ter muito conhecimento e não ter sabedoria; a sabedoria é uma qualidade pura do Espírito que se manifesta em nossa vida inspirando a ação amorosa e proporcionando abundância a cada momento." (Anjo da Sabedoria)


As crianças da Vila estão longe de qualquer compreensão, seja do parágrafo acima, seja de um filme da Pixar, ou mesmo da oportunidade de assisti-los. Literariamente, sempre poderemos dizer que há uma matemática perversa nas criações humanas. A pergunta como vamos sair dessa, ou antes, como sobreviver à avalanche, continua emperrada na pergunta precedente - para onde vamos?

“To infinity and beyond” (“Para o infinito e além”, slogan da Pixar)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 31/08/2011
Reeditado em 17/09/2021
Código do texto: T3193026
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