Ela escorpião, eu sargitário

Conhecemo-nos num show da banda cover dos Novos Baianos, Praga de Baiano. Eu voltava do banheiro e subia as escadas. Ela descia. Em verdade já havíamos até trocados algumas breves palavras, antes, numa das oficinas de pífano do seu Zé. Mas ela me dizia coisas sem parar, falava de Jackson do Pandeiro, de Luiz Gonzaga, Milton Nascimento, de Alceu Valença, de forró; amava dançar forró, falou com empolgação de suas músicas, das que mais ama ouvir. Era uma menina faladeira. Faladeira e pensadeira, intensa e profunda, como são os escorpianos que conheço. Então, tocou Acabou Chorare e nos beijamos pela primeira vez. Haveriam outras, tantas outras vezes, outros beijos, intensos e profundos, como se fossem mergulhos, nas suas águas, outros calorosos, como fogo em brasa, furiosos. Tudo foi intenso. Ela era uma menina descobrindo o amor e, tantas vezes sem perceber, ensinava a mim, coisas que eu não via, eu, o vivido, o sargitariano, livre, expansivo, elemento fogo. Sargitário com ascendente em virgem, um pouco de terra, minha esperança de equilíbrio.

Ela me fazia perceber sutilezas que eu não percebia, por distração, por ser excessivamente avoado. Talvez coisas da terra, o cuido, o zelo, o apego. Mas uma noite, quando ambos voltáramos de uma viagem a Minas; eu vinha de Ouro Preto, ela de Três Marias; então aconteceu da gente sair um pouco pra algum lugar pra matar saudades. Ela me deixara em casa, estava de carro. Entrou em casa pra beber um copo d’água. Fomos pra cama, nos acariciamos e, inesperadamente, transamos. Ela, pela primeira vez. Sentia que fora uma experiência muito forte pra ela, como seria pra qualquer outra mulher. Mas ela tinha um mundo e de repente fora lançada numa outra realidade. Não seria fácil, havia qualquer coisa desarmônica. Eu revelava pra ela minha maneira de amar, sem me fechar numa relação, deixaria ela se relacionar com quem quisesse, da maneira como quisesse, e a troca se daria assim, com liberdade para cada um expressar sua maneira de amar da maneira como quiser. Mas não era o que ela procurava, daí a desarmonia. Ela procurava um amor tranqüilo, ela esperava alguém pra se dedicar exclusivamente a ela, ela estava aberta a isso, até aí – a liberdade de uma relação aberta poderia ser desgastante, ela procurava um terreno mais sólido, seguro. Talvez terra, menos fogo; menos aventura, mais segurança. De uma forma ou de outra, no fundo, ela queria mesmo amar, estava disposta a isso, amar e ser amada.

Agora eu precisava me assegurar que não a deixara de mãos vazias, abandonada a própria sorte; ela, a quem já era grato; ela, que me fizera perceber o que eu ainda não via. Sentia-me responsável por ela, eu que dela tirei a virgindade, que a lancei de repente num outro mundo, agora sentia mais do que nunca a responsabilidade de ampara-la, de ser um pouco terra, de acompanha-la nesse novo mundo onde ela – inesperadamente – acordou.

Eu sabia, com toda clareza sabia, que o mundo dela, depois daquela noite, não seria mais o mesmo. Sentia a necessidade de estar ao lado dela, pronto para o que vier, para o abismo, para cada lágrima e para cada revelação. E foi com essa consciência que me encaminhei para o hospital onde ela aguardava uma consulta médica para tratar de uma inflamação na garganta. Aquilo me afligia. A gente na fila esperava o atendimento e ela se mostrava bem com minha presença ali, aquilo ia me acalmando. Me contara que havia tomado uma pílula anticoncepcional e que, depois disso, sofreu uma recaída, começou a sentir dores, fraqueza, a garganta inflamar. Para mim era muito claro que eu era também responsável por aquela situação, meu dever era, àquela altura, sofrer as conseqüências com ela.

Não esqueço sua expressão de dor no momento em que o médico lhe aplicara a injeção – lembro que o médico se retirou e nos deixou a sós no quarto. Ela gemia de dor, a injeção era violenta e o médico, dissera ela, tinha a mão pesada. Sorrindo e pesaroso, acariciava-lhe os cabelos, enquanto que ela, de bruços e estendida sobre a maca, me segurava com força pelos braços. Ali, naquele momento, naquele triste quarto de hospital, acontecia um pequeno milagre, um momento de travessia: eu me descobria como um homem, com a sagrada responsabilidade de um homem, de um homem que dá à luz uma mulher.

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 01/09/2011
Reeditado em 19/10/2011
Código do texto: T3194508
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