OUSADIA DA INFÂNCIA

Saboreava clandestinamente meu doce predileto numa dessas padarias que, se você estiver de dieta e morar a menos de 5 quilômetros de uma é melhor se mudar.

Estava ali absorvida pelo pecado da gula, quando passando os olhos pelo ambiente me deparei com uma criança tomando sorvete, com a boca, a roupa e tudo à sua volta sujo de chocolate, não por falta de modos, sim pela tentativa concentradíssima, porém frustrada, de dominar o talher que parecia ter vontade própria.

Observando a cena me veio à mente: “Que mãe corajosa!” Quantas de nós acabam abdicando vez por outra de dar esse prazer ao rebento preferindo a certeza de um amanhã sem torturas na labuta doméstica.

Dentre os devaneios daquele momento me ocorreu que adulto comete esse desplante muito freqüentemente consigo mesmo. E os motivos são os mais banais possíveis. Ou é pra não correr o risco de fazer papel de bobo, não ter trabalho depois pra limpar tudo, sei lá, mas é sempre um argumento fraco.

Não raro me dá vontade de comer bolo daqueles bem melados segurando com as mãos, melecando tudo, pra depois lamber despretensiosamente os dedos fazendo barulho de beijo.

Ou enterrar a mão em cima da camada grossa de chantilly de um bolo e depois espatifar com coragem o creme na minha própria cara, e na dos outros também, claro!

Algumas traquinagens gastronômicas eu ainda mantenho. Adoro lamber o copo sujo de vitamina de abacate até ele ficar limpinho e chupar manga melando tudo. Que delícia! Mas só faço isso em casa.

Agora tomar suco de canudinho e sugar o restinho fazendo barulho daqueles processadores de alimentos é muito legal. Faço isso em quase tudo que é lugar. Mesmo na companhia de adultos repressores.

Atingir a maioridade é bom, mas também perdemos um tanto de coisas boas. Por exemplo: alguns nem consideram a hipótese, outros até ajudam a criançada a fazer um castelinho de areia na praia, só que depois reclamam quando chega a melhor parte: pular em cima da magnífica construção e destruí-la por completo.

Outro exemplo: adulto muitas vezes recusa a adrenalina de descer no super turbo mega máster escorregador do parque aquático lotado com a desculpa da fila grande. Na verdade não quer pagar o mico de escorregar gritando de pavor feito maluco. Sim porque aquele treco é muito, muito, muito mais alto visto lá de cima e dá muito medo mesmo de descer.

Criança faz amizade fácil, chega no play olha pra outra criança, pergunta se ela quer brincar e em minutos já são amigos de décadas. Adulto não, chega na academia, vê todos os dias as mesmas pessoas e sequer as cumprimenta.

Às vezes sinto falta da displicência, da curiosidade, da ousadia da infância.

Depois que nos tornamos “gente grande”, necessariamente precisamos ter noção do começo, meio e fim de tudo para arriscarmos experimentar.

Nos despimos do olhar descuidado da criança e adquirimos a tendência de avaliar o que virá depois, sem riscos, sem aventura, sem desprendimento, tudo absolutamente previsível e controlado. Não é à toa que a vida vai ficando cada vez mais pesada, tensa, chata.

Em algumas situações a gente olha uma criança correndo, gritando ou se divertindo com quase nada, no saguão do aeroporto lotado, no salão de cabeleireiro, e até se irrita com isso. Já sai classificando o pimpolho como inconveniente ou sem educação.

Talvez o que realmente incomode não seja aquela criaturinha em si, mas o fato de ela nos fazer lembrar que perdemos a dose essencial da nossa criancice em algum lugar dentro de nós mesmos e, por descuido ou receio, nunca mais ouvimos falar dela.

Que cloridrato de fluoxetina, que nada! Quero mesmo é uma boa dose de ousadia da infância!