Do Calhambeque à proposta de vida

Os anos 60 foram os mais brilhantes da História da Humanidade. De toda a história, melhor dizendo. Tempos de Guerra Fria, de espionagem, medo de armas atômicas. As ditaduras ganhando força e um espaço absurdo nas Américas. Mais medo! Mais correria da polícia, mas os sonhos iam teimando. Nenhum dos sonhos iria se aposentar, ficar de pijamas esperando uma xícara de chá, mas buscar. No mundo o grito de paz e amor, o movimento hippie, todos os movimentos culturais de juventude propuseram uma crítica a todas as formas de poder autoritário. Era necessário mais do que comida, e sim a liberdade em todas as formas e tamanhos.

No Brasil, as músicas e protesto e os seus grandes valores, o “ é proibido proibir”, os festivais, vibrantes nas mensagens e no brilho das almas. A vida gritava. E em São Paulo a vida gritava alto demais. Os festivais da Record deixaram uma enorme herança: uma juventude eticamente saudável, politicamente questionadora, apaixonada pelas causas sociais e pronta para a construção de uma vida com cores vivas e novos formatos.

E eis que veio também a Jovem Guarda. Como todo jovem naquele tempo, eu também passei a admirar o Roberto Carlos. Também gostava de falar “bacana”, “uma brasa, mora”. Nunca fui uma tiete, acho isso pior que ridículo. No meu primeiro aniversário em tempos de Jovem Guarda, a minha mãe me perguntou o que eu queria de presente. Eu respondi: “um disco do Roberto Carlos”. Ganhei um compacto simples, porque o duplo era bem mais caro. E eu escutava o “calhambeque bibi, quero buzinar meu calhambeque bibibibibibi”.

Passou muito rápido o meu gosto por esse tipo de música e eu fui meio que esquecendo do Roberto Carlos.

E hoje, às vésperas do décimo aniversário do 11 de setembro, quando vejo esse cantor fazendo um show magnífico em Jerusalém, um brasileiro, no local mais tenso da terra, a minha emoção se torna indescritível e inenarrável.

Foi uma retumbante demonstração de amor à vida o ato de se deslocar até lá, com toda uma estrutura gigantesca e milionária... e cantou a paz.

Jerusalém já foi destruída muitas vezes, a começar no século VII a . C. pelos exércitos da Babilônia. Depois, a destruição ocorreu por conta das imposições do antigo Império Romano. Sofreu também uma barbaridade no século XI, por ocasião das Cruzadas e, na história

mais recente, as tensões aumentaram absurdamente a partir da criação do Estado de Israel em 1948, e árabes e israelenses se tornaram inimigos diretos e as relações sociais passaram a se pautar pela violência e todas as formas de preconceito e intolerância.

Ver o Roberto Carlos ali, cantando um repertório com músicas falando de amizades (“eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar”), de amor verdadeiro, exibindo o sentimento da relação entre mãe e filho, cantando “Jesus Cristo”, “Eu sei que vou te amar”, uma belíssima canção de homenagem à cidade que o acolheu...

No palco, uma jornalista negra que, num determinado momento, dançou com o cantor...

Proposta de paz, de falar de amor de forma macia e suave, nas entrelinhas mostrar o significado da tolerância em relação ao diferente, mandar flores para a platéia no final, sorrir, abrir os braços em sinal de abraço grande... isso me deu um orgulho de ser brasileira que preciso falar com voz clara e forte.

Falar como num canto, um canto geral. Levar música para quem ouve o estrondo das bombas, jogar flores para quem está habituado a jogar ou pensar em jogar pedras. Abrir os braços envolvidos em roupas brancas para quem está habituado a julgar o diferente com acidez...

É preciso provocar mesmo, de forma amorosa e doce, provocar muito todos os sentidos e sentimentos e sofrimentos e pensamentos e ideologias. É urgente redescobrir a vida e seus significados, reinventar o tempo, e cantar. Como dizia Vinícius de Moraes; “e no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar. É preciso cantar e alegrar a cidade”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 12/09/2011
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