Ramalhão

Há alguns meses não visito sebos. Resolvi frequentá-los quando a leitura tomou parte do meu sangue, e nem era mais um garoto-moleque-dependente-dos-pais mas sim um pai de família sedento por encontrar o lugar no mundo após descobrir-se responsável por um toquinho de meio metro que mamava e fazia cocô na fralda. No início era um apaixonado por temas ligados à Teologia, espiritualidade e a poesia mística, e com o tempo fui tomando gosto pela literatura nacional, mais notadamente as crônicas. O cheiro dos livros velhos são fascinantes, e a forma como estão distribuídos nas estantes impressionam, motivam o garimpo por alguma joia oculta, pronta a reluzir dentro de nossas almas. Fui encontrando obras raras, outras nem tão velhas e mesmo revistas de minha infância, cujas capas ainda estavam perfeitamente armazenadas no meu cérebro. Quando era mais novo achava o máximo a diagramação da revista “Superinteressante” e cheguei a comprar uma coleção dela numa só tacada. Quase quatro anos de revistas num só sábado!

Houve época em que me dediquei às biografias. Vidas me interessavam. Hoje nem tanto. Acho as palavras enganosas e um romance pode estar escondido atrás de um personagem. Uma me chamou a atenção, e resolvi comprar.

O livro datava de 1969. Capa amarela e branca, lombadas levemente agredidas pelo tempo e folhas bem amareladas. Os tipos são perfeitos, de tamanho agradável à leitura. Noto que no meio do livro há um encarte. Conta a história de um dos Papas. Muito bem conservado, parece retirado de uma revista. Estava dobrado em oito partes, e aberto ficava do tamanho de uma mesa média. Era um achado, certamente.

Encontrei um bilhete no meio do livro que dizia assim: “Querida Senhora D.Inês. Profundamente agradecida pelo telegrama tão simpático que me enviou no dia ‘22’, aqui lhe deixo o meu mais afectuoso abraço.” Junto a ele uma imagem bucólica, em preto e branco, datada de 30.11.1967 com a expressão COLÉGIO DE SÃO JOSÉ - RAMALHÃO. Assim, em letras garrafais. Pesquisei na internet e tratava-se de um colégio de freiras em Portugal.

As peças estão encaixadas: O livro era de edição portuguesa, o colégio era português e o “afectuoso abraço” dão a certeza de que em minhas mãos parava um material que havia atravessado o oceano! Agora restaria saber o quando e como fora parar aqui, em Teresópolis. Esta dúvida com o tempo foi perdendo importância, e agora, anos depois, deparo-me novamente com a gravura e o bilhete em mãos, pensando na vida. Histórias que se cruzam, a minha e as das senhoras do bilhete. Sim, acho que são senhoras, não sei por quê. Já se passaram quarenta e quatro anos, talvez nem estejam mais vivas para encontrar-me com elas e entregar à Dona Inês o bilhete e a gravura do colégio de freiras do Ramalhão. Penso nas coisas que anoto em meus livros, nas linhas que marco com lápis e nas carinhas que desenho ao lado de cada parágrafo que me inspira, que me assombra, que me confunde ou que me constrange. Em alguns coloco minha adesão em palavras. Penso em cada livro meu, quarenta e quatro anos além do hoje; já serei um septuagenário - seria agradecido se puder chegar lá - e cada anotação destas pode aparecer na mão de um outro garoto sedento por viver uma vida inteira, por inteiro, sem meias palavras. Vou encher meus livros de boas lembranças.