Ano novo na guarita

Ainda entre os gases matutinos, entre os cafes requentados e a noite que teimou em passar. O frio é constante e a rua ganha vida parte a parte, o que era preto e branco vai colorindo-se como um sorriso de felicidade em um palhaço. Em breve os ônibus estaram em suas linhas de ida e volta trazendo os trabalhadores para o centro. Mas ai lembrou: era feriado. Aquela guarita tinha um ar puramente triste naquele dia que nascia em seu esplendor, alguns copos de cafés que estavam jogados pelos cantos e algumas revistas velhas. Desligara o rádio que tocava uma alegre música e acendera um cigarro observando a fumaça subir, subir, subir e se espalhar.

Uma alquimia de sensações e sentimentos remoia seu coração e suas lembranças mais antigas. Família, amigos, pessoas que há muito não via, outras que não se lembrava mais, alguns retratos lhe sorriam e ele os observava com os cantos dos olhos, coração apertado, frio. O silêncio que reinava e uma pequena sensação claustrofóbica daquela guarita. Aquele espaço seu que ele dominava. Não podia dizer “seu” já que era da empresa para qual trabalhava e logo sairia dali. Pensava em fazer um negócio próprio, manutenção em carros, não sabia. Já estava farto de receber ordens, de ficar ali. Aquele silêncio não era seu, era pago para ser silêncioso, para não dormir, para não falar, para não ser. Ele era apenas mais um objeto e possívelmente aquela guarita valia mais do que ele. Sentiu-se triste porém, amanhacera.

Fora noite de ano novo no dia anterior. Ele acompanhara a contagem pelo rádio. Comemorara com café. As pessoas iam e voltavam comemorando e festejando. Havia um sentimento de “festa dos sobreviventes do ano” no ar, lembrava disto e sorria sarcasticamente para si mesmo. Havia rancor nesta festa, havia um ódio escondido no fundo do seu peito que subia até a base da garganta quando lembrava-se que ano virara denovo.

Mais um ano na guarita.

Viveu a mesma vida durante todos os dias, sentia-se cansado (amanheceu). Era uma repetição, era como se olhasse eternamente um espelho porém sua imagem se convertia na ossada que temia virar. Aquele buraco frio preparado para ele no cemitério, na lápide escrito “eis um que não fora nada”. E a sensação de tempo se esgotando. Era uma ampulheta humana (amanheceu), e o sangue escorria-lhe pelos braços e pernas, enchia seu vazio na alma. Mas acordara e tudo fora um pesadelo, uma brincadeira de mau gosto que pregara em si mesmo. Todos gritavam “feliz ano novo” e ele dizia, “feliz ano novo”.

Os fogos de artifício iluminaram o resto de noite que sobrava, as pessoas passavam de ida e volta, vestiam-se de branco. Ele com seu uniforme azul, sentia que não tinha sorte porque sempre estava de uniforme azul. Sentia uma pequena inveja da festa particular de todos e dos risos de felicidade, pensava em seu patrão no apartamento dele festejando enquanto o seu peão lá estava, guardando a casa da rainha. Mas ele tinha algo que ninguém tinha, sua própria solidão. Cultivara a mesma como se fosse uma delicada planta, esta solidão que crescera ali e dera os frutos de lágrimas contidas. Eram frutos amargos, eram plantas feias mas era os únicos amigos que aquele homem possuia naquele momento, suas companhias até o nascer do sol do outro dia.

E o outro dia chegaria depressa.

E ele ficaria ali por mais alguns anos, em sua cripta permanente, ali como uma inútil esfinge.

E assim passara mais um ano novo na guarita