Cocada branca

O milagre da memória. Um retiro de alguns minutos no meio do burburinho desses tempos agitados. Uma velha cantiga, um trecho de estória nas folhas amareladas de um livro velho, coisas assim pequenas, quase sem importância, tornam-se de repente veículos poderosos, capazes de me levar de volta no tempo. Deixo-me conduzir como criança através dos labirintos da memória. Pessoas e coisas há muito desaparecidas ressurgem miraculosamente, deixo-me ficar esquecido, inebriado pela grandeza desse presente da lembrança. Um momento mágico.

Estou agora com sete anos, na cidade pequena, os quintais têm muitas árvores frutíferas e, não raro, bambuais enormes. Na Rua da Várzea, de frente à casa grande de fazenda, residência dos Touradas, há uma gigantesca gameleira que à tardinha projeta sua grande sombra sobre o verde gramado onde a molecada se reúne para jogar bola, pela rua descalça quando é o tempo das águas, brotam aqui e ali nascentes de água límpida. Estou de novo no paraíso, não se tem problemas de trânsito, não se tem notícias de tráfico de drogas, de assassinato de jovens nas praças, de estupro de crianças, de assaltos a mão armada. A preocupação dos adultos com as crianças é com relação aos muitos poços de água limpa, convidativos a um mergulho: o açude do Zé Bentinho, o açude do Fausto, o poço do Joaquim Preto e alguns trechos do Ribeirão da Fartura ou do Pavão ou depois que os dois se encontravam onde há um lugar muito aprazível conhecido por Caidor.

De calças curtas azul marinho e camisa branca, uniforme da Escola Estadual Major Agenor Lopes Cançado, uma pasta, de couro amarelo, muito surrada e com o zíper arrebentado, dentro os cadernos pobres mas bem encapados com papel colorido, uma bonita ilustração na primeira página, providências de minha irmã mais velha, a que eu chamo carinhosamente de Dete, pessoa muito amada a quem nesse início da década de setenta, só restou a mim de irmão pois morreram os três nascidos entre ela e eu.

Aos dezesseis anos ela devota a mim todo o seu amor e gasta todo o seu tempo livre a cuidar de mim...

Um ruído. Uma freada ou uma buzina me trás de volta. Fecho os olhos e tento recuperar a linha tênue do doce devaneio. Posso vê-la, com os olhos da alma, feliz e amada. Os seus cabelos longos e lisos, alourados. A meiguice morava no seu alvo sorriso e a ternura nos seus olhos verdes. Jamais poderei retribuir todo o amor que ela me dedicou e todo o bem que me fez, mas as sementes que plantou na terra virgem de meu coração de menino são hoje flores vivas que tenho tentado espalhar por onde ando. Amando-me gratuitamente ela ensinou-me a lidar com as asperezas. do mundo sem deixar-me contagiar pelo ódio. Alguém que foi tão amado não aprende odiar.

De repente, ocorre-me que o amor independe de condições, o amor fraterno daquela menina moça era como uma planta nativa, que teimava em crescer no solo árido das nossas dificuldades financeiras. Ela passava o dia trabalhando na casa da senhora rica, cuidando de seus filhos bem nutridos, dividindo com eles a atenção que queria dar a mim. À noitinha chegava cansada, à nossa casinha de periferia, quase no mato, sem energia elétrica. Posso vê-la a passar roupas com o ferro de brasa, à luz da lamparina. No rádio de pilhas, às dezoito horas, a Rádio Tupi transmitia, na voz de Júlio Louzada, a pungente ave-maria. Era um momento de lágrimas. Ela depositava o ferro na base de descanso e me apertava contra seu seio, como se temesse que garras invisíveis me arrancasse também dela. Passado o momento de lágrimas ela entregava-me o agrado costumeiro, mimo que ela, sempre que tinha algum dinheiro, comprava para mim: uma cocada branca.

Ainda cedo da noite, punha-me para dormir no cantinho de sua cama. Enxotava todos os fantasmas dos meus medos. Egoísta que sou, não posso precisar muito bem o que ela sonhava para si mesma. Sei que o meu pior medo era que aquele tempo passasse.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 20/09/2011
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