Play Station II

Fincava o cotovelo no meu flanco, o rapazinho, me chamando a atenção para o brinquedo exposto na vitrine:

- Veja, pai. É um Play Station II.

Fiquei admirado com a perfeição com que pronunciara as palavras em inglês, e não é só porque já está na quinta série, aquelas eram apenas duas das centenas de palavras estrangeiras que fazem parte da sua rotina diária. Eu sabia do que se tratava aquele troço, mas quis puxar sua língua:

_ E para que serve essa coisa?

_ É um vídeo game. Ô, pai. Se liga.

_ Então serve para que?

_ Para jogar. Não sabe a tradução de game?

_ Mas você já tem um vídeo game.

_ Está ultrapassado, pai. Não é um Play Station II.

_Mesmo assim você passa horas diante dele. Não sei como consegue gostar de uma coisa assim.

_ O senhor só não gosta também, porque não tem asma...

_ Asma?

_ É, pai. As ma... quer dizer: as manha. O senhor também não flagra nada, hein?

_Ah! Então você tem as manha?

_Claro. Passo com facilidade as fases mais difíceis.

_No jogo que gosto de jogar, eu também tenho passado as fases mais difíceis. Com uma vantagem: o jogo que eu jogo nunca fica ultrapassado.

Ele pareceu interessar-se pelo assunto. Esqueceu-se momentaneamente o Play Station II. Retomamos a caminhada lentamente.

_De que jogo está falando, pai?

_O jogo da vida...

O vídeo game é um ponto de discórdia entre o garoto e eu. Tento não pegar demais no seu pé, mas às vezes não tolero vê-lo preterir atividades inquestionavelmente mais saudáveis, e gastar horas preciosas de sua infância na solidão do seu quarto, operando aquelas manetes, absorto numa ocupação tão infrutífera. Tem vezes que engulo minha intolerância, pois penso na possibilidade de um dia ele me provar que estou errado. E penso nisso com base em um conflito de gerações de que tomei parte quando tinha sua idade. Hoje sei que eu não estava errado.

Eu tinha a carteirinha de número cem da biblioteca Pública Aurélio Camilo e devorava um livro após o outro numa voracidade que pareceu assustar meus pais. Acho que tinham medo que eu enlouquecesse. O conflito durou por algum tempo até que, peguei as manha e passei de fase. Deixei de ler na presença dos adultos.

Nos fundos da nossa casa passava o Ribeirão da Fartura, suas águas eram límpidas e abundantes, ainda não recebiam excremento humano e outros dejetos, à exceção da descarga de água de mandioca brava lançada por uma fábrica de polvilho uma vez por ano, na safra, e que provocava uma matança de peixes. Lembro-me que costumávamos recolher quilos de piabas, carás e bagres ainda se debatendo, na agonia da morte. Dias depois a água voltava à sua limpidez natural. Os ingazeiros com seus frutos doces e a sangra d’água com suas grandes folhas verdes de um lado e esbranquiçadas do outro, que na medida que envelheciam adquiriam uma cor alaranjada. Também o asfalto e as edificações não haviam ainda coberto as inúmeras nascentes que desaguavam no seu leito. Em certo ponto desenvolveram-se em suas margens vastos bambuais por entre os quais se formavam labirintos e galerias sombreadas onde eu podia me refugiar para mergulhar no vasto mundo da leitura...

_ O jogo da vida é tanto ou mais excitante do que esses joguinhos eletrônicos. Aqui você não brinca de jogar. O jogo é sério. A manha, como você diz, está sempre nas escolhas, como na maioria dos jogos. Todos os dias você tem que fazer várias escolhas, algumas são definitivas. Não têm volta. Se fizer as escolhas certas será sempre um vencedor. Se fizer as escolhas erradas: game over.

_ Pode ser mais específico, pai?

_ Claro. Vamos exemplificar: Você pode escolher ser o herói do seu Play Station, seja ele qual for, ou pode escolher ser o herói na vida real enfrentando os desafios do cotidiano com a mesma raça e desejo de vencer com que enfrenta lá no joguinho. A diferença é que aqui no mundo real os resultados são concretos, é por isso que o jogo é mais emocionante.

Ele pareceu meditar por um instante ao cabo do que comentou:

_ É, pai. Acho que vou tentar pegar as manha do seu jogo.

Afaguei paternalmente sua cabeça, como a dar-lhe os parabéns pelo propósito que acabara de firmar. Daí ele sorriu-me com ar maroto:

_Mas se o senhor pegasse as manha do meu jogo, ele bem iria ajudar-lhe a relaxar.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 21/09/2011
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