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MEMÓRIAS DE MINHA RUA



“No Bangalô de Helena...
Morena e alegre,Joana (en)cantava em manhãs de setembro"





Uma vez mais,à convite de meu coração,saí pisando o sol da manhã.Vapores diáfanos em minha xícara de café já haviam coreografado todas as danças do ventre possíveis e meus devaneios, de carona,contorciam-se em viagens aladas.
A roseira de outros tempos,ao lado da vidraça,esboçando aquele mesmo sorriso tímido,encabulado, e uma aragem cafajestemente fria desvirginando purezas de setembro.
Um novo dia começando e aquele travo que não se explica.Amarga-se,pura e simplesmente até que a cara de cachorro que caiu da mudança vá cedendo espaços a algo mais maleável.
Passos sem rota definida ,pensamentos alados e,não por acaso...Aquela mesma rua.
As pedras que agora lhe revestem sufocam ecos embaçados de algumas alegrias quase acinzentadas de distância.Do pouco que ainda resta,a gargalhada sonora de dona Vica é o ponto de referência do que foi um dia aquela estradinha de chão batido que denominávamos “rua do Fomento” e partia numa reta, quase infinita, sumindo entre o túnel dos eucaliptos ,por onde com um pouco mais de imaginação era possível visualisar o paraíso.
Vêm-me a lembrança a manhã de um dia qualquer.Pereiras de branco,meninos brincando,mulheres em vassouradas pelos terreiros...A ruazinha pacata abrindo-se para um tempo novo.Um tempo de flores.
Bangalô de Helena. Joana,a criada,limpa as vidraças.Canta uma melodia que fala de rosas ,de valsas...É uma canção popular de uma cantora gaúcha.
Afinadíssima! Sabe do fascínio que exerce,então...Capricha.
As janelas acolhem o refrão da cantante:
Joana,morena,(en)canta na manhã de setembro:
“Todas as moças de rosas na mão//Enquanto a gaita tocava//E eu olhava com muita atenção//O par que melhor dançava”
Brotam violetas ao redor das moitas a saudar Joana,uma “ quase Sarita Montiel" ,uma precursora da primavera.
Do mesmo bangalô sai aquele senhor,de cabelos grisalhos,para sua longa caminhada matinal pelos campos que lhe pertencem.
Segue assobiando uma canção com  acordes infantis.A placidez do campo confunde-se à sua plácida figura que parece extraída de  trechos  de  alguma narrativa lírica.
Margaridas brancas revestem o charco que divide as terras de dona Lúcia com as suas.
Ele para por um instante,espia o céu,o olho d´ água,o riacho...Curiosas,do outro lado da cerca as cabras lhe observam.
Retorna pela coxilha pontilhada de quero queros.
Em frente à casa um cavalo pasta.As batidas do cincerro obedecem à cadência das dentadas na grama.Ipês guarnecem o portão de entrada e,pouco além da cerca  aramada,sobre os cupins, corujas buraqueiras tomam o sol da manhã.Asas abertas,olhares piscantes , paparico aos filhotes.
”Coisas de setembro!”
Partiram todos em cruzeiros pelos mares da eternidade.O bangalô,fechado, continua o mesmo.A visão , à distância ,sugere a  imagem  de uma caixinha de música.O giro da chave trancafiou-lhe vidas,ecos,afetos...
Se aberta,certamente eclodirão de seu interior a cantoria de Joana ,o assobio do senhor grisalho,o sorriso de Helena...
O ipê derrama-se ainda em amarelo feito sentinela a guardar preciosidades na caixinha alva com bordas azuis.
Devaneios,lembranças,saudosismos...Deixa pra lá!
O que importa nesta vida é a sensação de leveza ainda que seja resgatada numa saudade,numa lembrança.
De volta à casa ,abrirei janelas e portas,passarei um espanador na poeira da mesmice,ousarei guarnecer  de  flores alguns vasos.
Depois,sentado num degrau de escada ,me  colocarei à espera da  visitante que
atenciosamente, já avisou-me estar à caminho.
Finalizou o seu  email com as palavras:
Um abraço da sua... "prima vera".




clique  no  linc abaixo  para ouvir a  canção  de  Joana:

http://www.youtube.com/watch?v=fiK3oKK6pNE