Meu pai

A lembrança mais antiga que tenho de meu pai é a dele me carregando nos ombros numa estrada rural, talvez a caminho do sítio do meu avô materno, onde todo ano festejava-se São João com fogueira, reza do terço, chá, quitanda caseira e fogos de artifício. Deduzo que era junho, porque era o mês em que o capim meloso dava sementes, e até onde a vista alcançava o pasto cobria-se de um roxo bonito. Naquele tempo os sertanejos pobres extraiam sementes do precioso capim que depois de apuradas eram vendidos aos proprietários de terras para a reforma dos pastos. Meu pai tinha em casa, enfiado na trave da cozinha um cutelo muito afiado que usava para a ceifa da semente do capim. Hoje o cheiro e a visão do capim meloso é tão remota quanto a de meu velho. Ambos desapareceram para sempre.

Pessoa de pouca instrução, meu pai deu-se ao trabalho com coragem e resistência ferrenhas. Homem de mil profissões e mil e uma misérias, tinha de compensar sua falta de capacitação com versatilidade e esforço sobre-humano. Até cair enfermo e não poder mais trabalhar, não me lembro de vê-lo acordar um dia em casa sem ter o que fazer. Deixou-me esse triste legado: fico deprimido sempre que tenho um tempo livre.

Contudo, apesar de seu pouco conhecimento ele deu-me muitas lições de sabedoria. Ensinou-me a sorrir dos contratempos, a recolher as velas até passar a tormenta, esperar com serenidade um novo dia, talvez só não tenha me ensinado direito a ser pai. Debalde tento imita-lo. Por mais que eu me esforce não consigo ser para meus filhos o que ele foi para mim. Não nos dava, a mim e a meus irmãos o conforto e a segurança que meus filhos têm, mas sabia sentar-se conosco no chão, contar casos de onça e assombração, ensinava-nos cantigas e versos de que até hoje nos lembramos. Nunca levantava a voz, quando era inevitável repreender-nos fazia-o com tanto amor e mansidão que a culpa doía mais que as chineladas de mamãe.

A lição mais dura que me deu foi com um sorriso triste seguido de apenas silêncio. Aos dezessete anos, eu, rapaz caseiro e bem comportado, causei-lhe a primeira preocupação. Encantado que estava com minha primeira namoradinha, deixei-me ficar com ela na sacada da casa onde morava. Puros e inocentes, enlevados com a poesia daqueles primeiros encontros juvenis, não vimos o tempo passar. Sobressaltei-me ao constatar que já passavam das duas da madrugada. Deixei-a quase que em fuga. Caminhei angustiado na direção de minha casa, na Praça Mário Ernesto da Silva, no cruzamento da Coronel Martinho Ferreira do Amaral com a Travessa 13 de Maio, meu pai me esperava de pé, recostado ao poste de luz, não me repreendeu, não disse nada, apenas me sorriu muito triste. Caminhamos em silêncio pela rua deserta. Ele no seu andar meio cambaio tão conhecido meu, o chapéu surrado na cabeça e o cigarro de palha no canto da boca. Eu com as mãos nos bolsos, chutando pedras para disfarçar a vontade sem coragem de lhe pedir perdão. Perdão por ter-lhe dado cuidado, por ter-lhe feito sair do aconchego de sua cama para ir atrás de mim na madrugada fria. Foram só alguns minutos, mas aquela foi a mais longa caminhada de minha vida. Depois disso, mesmo já homem feito, nunca mais lhe dei o mesmo desgosto.

A última lembrança que tenho de meu pai é a dele oferecendo-me um sorriso torto por sob o bigode, naquela tarde. Estava contente porque uma chuva fina começava a cair sobre a poeira da rua, espalhando aquele cheiro de terra molhada. Não mais podia falar, conseqüência do derrame, mas acenou-me do seu leito de morte e fez jóia com o polegar bem erguido. Aquele aceno era a sua despedida. Talvez ele soubesse disso.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 26/09/2011
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