Depois de amanhã é dia 31

Espero o relógio de pulso marcar dez e trinta. Confiro: dez e trinta e dois no outro relógio repousado sobre a mesa. Nunca sei qual o certo. Antigamente tinha o 130, hoje temos que ligar a televisão no canal de notícias. São três os remédios, além do polivitamínico: um para pressão, outro para afinar o sangue e um para proteger o estômago dos outros dois.

A empregada vem conferir se me lembrei de tomá-los. Faz isso todos os dias. Ordens de minha filha. O senhor já tomou seus remedinhos? Não tenho respondido ultimamente. Há algumas semanas que só aceno com as mãos para que volte à cozinha. Há alguns meses venho pensando em parar com os remédios. Menos o polivitamínico de frasco colorido.

São Paulo está muito diferente. É divertido reparar. Costumo anotar num caderninho ao lado da mesa de cabeceira. Não posso reclamar da sorte. Acho que nas redondezas o meu é o único prédio cujas paredes são de vidro. Vejo tudo da cama. Está cada vez mais difícil e mais sem sentido sentar na velha poltrona. As costas doem, a vista cansa. A cidade brilha de noite e faz muito barulho de dia. Consigo enxergar o Ibirapuera daqui. Faz sol e calor mas o médico proibiu o ar-condicionado por conta da rinite alérgica.

Às vezes ainda me lembro de Niterói. Lembro do barulho do mar como se batesse em minha cabeceira. Havia o vassoureiro aos domingos e o rapaz que vendia pão frio de bicicleta. Passava buzinando e atiçando a cachorrada. Costumava acordar cedo para nadar. Ia da pedra da Baleia à praia do forte. Quatro braçadas e uma respirada. Primeiro pro lado direito e depois pro esquerdo para não forçar o pescoço. Nos finais de semana comprava peixe fresco direto do pescador. Vocês têm que parar de matar os menores. Se continuarem a fazer isso seus filhos não terão o que pescar lá na frente. Todos eles concordavam comigo. Limpa? Limpa, por favor.

O problema da alimentação enteral é que a sonda incomoda demais. Tirando isso – e a ausência de paladar – até que não é de todo ruim e ainda ajuda a controlar o peso. Ver o lado bom das coisas. A enfermeira substituta sempre repete esse troço. Já falei que prefiro essa moça à que fica todos os dias aqui. Meninas mais novas são mais delicadas. E essa moça ainda é muito gentil. Se preocupa comigo. Pergunto sobre o namorado, o que eles fazem. Elogio sua roupa, seu cabelo. Ela parece gostar de mim. A outra não, me trata como se eu fosse um vegetal. Checa o soro, pergunta se eu quero ir ao banheiro, repete que eu não devo ficar curvado para a janela. É evangélica. Nunca gostei de evangélicos. Tirei a televisão do quarto por causa dela. Foi ótimo. Esses programas de TV a cabo não prestam. Nunca prestaram. Sobra-me todo o tempo do mundo para leitura.

Todo o tempo do mundo é a forma irônica que utilizo para explicar essas pilhas de livro espalhadas pelo quarto. Quase ninguém entende de ironias por aqui. Outro dia, o rapaz que veio me vender livros entendeu. Meu filho, eu tenho todo o tempo do mundo para leitura. Ele sorriu com respeito. Olhamo-nos com cumplicidade. Menino esperto. Comprei tudo o que me ofereceu.

Confesso que não tenho lido nada novo. Os livros vão se amontoando, um em cima do outro, mas continuo lendo as mesmas coisas. Minhas digitais estão até visíveis nos Manoel de Barros. Lê-lo é também um exercício irônico. Dia desses tentei conversar sobre isso com a enfermeira substituta. Não deu muito certo. Mas cheguei a ler alguns trechos. Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito. Ela me olhou por instantes e disse timidamente que era bonito. Não pediu pra que eu repetisse e disse que iria passar um pouco de café para espantar o frio.

Quando a noite chega é muito ruim. Tenho tido muita dificuldade para dormir. A cidade não adormece e o terceiro andar não me deixa esquecer que lá fora as ambulâncias e os coletivos não param um único segundo. As segundas, quartas e sextas são piores. Coleta noturna do lixo nos restaurantes aqui da rua. Sei distinguir toda a operação fase por fase. Primeiro o caminhão encosta. Depois ouço o barulho das rodas dos cestos de lixo. Elas param de girar e os homens fazem barulho de força. O motor da caçamba começa a funcionar ruidosamente e então o barulho de garrafas quebrando domina o ambiente. Quando o Palmeiras ganha, no domingo ou na quarta, o pessoal dos restaurantes brinca com um dos lixeiros. Isso às vezes me dá saudade do meu time. Quando consigo dormir ainda sonho estar jogando futebol. Ontem mesmo dominei no peito uma bola chutada a esmo pelo zagueiro. Na matada tirei meu marcador, sentindo seu corpo encostado no meu. Era bom no pivô. Rapidamente abri na ponta e corri para a área. Foi tudo muito rápido e a cabeçada foi certeira no canto do goleiro. Não gosto de sonhar com isso.

Amanhã quem vem aqui é o médico. Acha que eu não sei de nada. É filho de um amigo dos tempos de banco. Bom rapaz, inteligente, sabe conversar. Mas como todo rapaz, subestima minha capacidade de entendimento. Vai dizer que estou ótimo, com aparência de garoto. Vai franzir a testa, induzir que está quase, mas vai dizer que ainda preciso de toda aquela parafernália. Não sei se vai perguntar de novo se gosto de gelatina. Vai dizer que o pai dele mandou um abraço e vai me perguntar sobre os netos.

Depois de amanhã é dia trinta e um. Todo o ano eu vou à igreja no dia trinta e um. Não sei se conseguirei sair daqui neste estado. Minha filha disse que pode trazer o padre. Ela não entende. Não gosto do padre. De nenhum. A igreja é que importa. Vou, chego com calma, escolho um banco em frente ao altar, me sento. Faço o sinal da cruz. Fecho os olhos e sinto o corpo leve. Há uma espécie de vácuo nas igrejas.

Dizem que nada existe no vácuo, nem o tempo.