Hipálage: Uma palavra no lugar de outra

UMA PALAVRA NO LUGAR DE OUTRA

José Augusto Carvalho

Vou falar sobre uma construção sintática que, às vezes, parece o samba do crioulo doido. É a hipálage.

Os dicionários definem a hipálage como um expediente retórico segundo o qual uma palavra ocupa numa frase o lugar que convém logicamente a outra que com ela mantém um vínculo semântico e gramatical. Por exemplo: ao falar, em Os Lus. X, 2, em “abundantes mesas de altos manjares”, Camões quer dizer, retoricamente, “abundantes manjares de altas mesas”. Quando fala em “apetite necrófago da mosca”, Augusto dos Anjos, no poema “Cismas do destino”, parte II, quer dizer que a mosca é que é necrófaga, e não o apetite.

A hipálage é um processo psíquico, como a sinestesia. A sinestesia é a correspondência entre sentidos ou sensações diferentes, como “música doce”, por exemplo, em que a sensação acústica – música – se associa a uma sensação gustativa – doce. É por sinestesia que falamos em “voz grossa” ou que atribuímos idéia de coisa “gorda” a uma palavra como “maluma”, ou damos cores (verbocromia) a determinados sons, como o negrume ao u (fúnebre, túmulo, catacumba, urubu), e a clareza ao a (claro, raro, preclaro...) A hipálage, no entanto, é mais complexa que a correspondência sinestésica de sensações, e não raro diz respeito à sintaxe e não apenas à semântica. É por hipálage que dizemos que o sapato não entra no pé (na verdade, é o pé que não entra no sapato). Também por hipálage, a moça que engordou diz que determinado vestido não cabe mais nela (na verdade, é ela que não cabe mais no vestido).

Não é apenas o deslocamento de um nome ou de um verbo que produz a hipálage; a permuta de casos e de funções sintáticas também pode caracterizá-la. Assim, uma expressão aparentemente errada, como “dar a luz a uma criança” (por “dar à luz uma criança”) pode ser adequadamente justificada como uma hipálage popular. Tanto faz, portanto, dizer que o bebê foi dado à luz, quanto dizer que a luz foi dada ao bebê... A preferência que as gramáticas dão a uma das expressões (“dar à luz um bebê”) não justifica a condenação da outra (“dar a luz a um bebê”).

Há exemplos “carnavalescos” de hipálage na sintaxe popular, observáveis até mesmo na fala de pessoas cultas. Quando diz que “meu carro furou o pneu”, o falante não quer dizer que seu carro tenha realmente furado o próprio pneu... Quando dizemos que “Pedro quebrou o braço ao cair”, não estamos querendo dizer que Pedro foi o autor da própria fratura... Quando se diz que “o tanque vazou o óleo todo”, não se quer dizer que foi o tanque o autor da façanha... Outros exemplos: Cafu fez três cirurgias (foi o médico quem as fez). O jogador operou o septo nasal (foi o médico dele que operou).

Embora já se tenha falado nessas construções sintáticas em trabalhos lingüísticos sobre topicalização (como o livro de Eunice Pontes, Sujeito: da sintaxe ao discurso. São Paulo: Ática/INL, 1986) não me consta que exista algum estudo específico de psicolingüística exclusivamente sobre a hipálage.

É pena.

José Augusto Carvalho
Enviado por José Augusto Carvalho em 21/12/2006
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