Me ensinaram tudo errado, inclusive o uso da próclise.

Me ensinaram tudo errado, inclusive o uso da próclise.

Me ensinaram a acreditar que todos eram bons: até prova em contrário. Nada que um pouco mais de trinta anos de vida “consciente” não me convencessem do contrário: não esperar dos outros senão o pior. Ocasionalmente até me surpreendo positivamente - e quando isso acontece, que bom! - mas já tenho por hábito desconfiar de tudo e de todos, até de mim mesmo. De quebra, não me decepciono mais.

Me ensinaram que eu tinha que estudar, que minha condição de filho da classe média remediada não me permitia outro destino que não a sala de aula, os cursos de línguas e, com sorte, o banco de uma universidade pública. Só assim escaparia da sina de meu pai, de meus avós: pessoas cultas e intelectualizadas presas ao trabalho braçal.

Cresci e "cheguei lá”: optei não pela música ou pelas letras, que me fascinavam, mas pela Medicina. Ah, o sonho pequeno-burguês e interiorano de meus pais... Quantas dúvidas me fez carregar...

Mais aos trancos que aos barrancos, formei-me a tempo de conhecer este país em que “tudo muda apenas para continuar tudo igual” (parafraseando Visconti), em especial o assim-chamado “mercado de trabalho” e a profissão.

Não bastava ser médico, tinha que ter especialização. Uma, duas, três. Quantas mais melhor. Anos de uma espécie de subemprego mal-remunerado e mal-orientado em troca dos malditos papéis - verdadeiras cartas de alforria, que por mais valor legal e científico que possam ter, abriram menos portas que o dinheiro ou os “bons contatos” de outros mais afortunados que eu. Era a forma abjeta e cruel do “capitalismo” brasuca a me colocar - de volta - em meu pequeno lugar e papel.

Mas não desisti; continuo por aí, na luta diária por um lugar ao sol, ou pelo menos por alguma sombra nesta vida de merda. Disseram-me que o trabalho dignifica o homem, faz dele “alguém”, ocupa sua mente (doutra forma certamente ociosa) e o aproxima de Deus. Concordei com tudo isso ao longo do tempo, mas quando penso que as duas gerações que me precederam, que se consideravam “sem estudo” e sofriam por isso, ganharam relativamente mais, construíram mais e proporcionaram vidas mais confortáveis para si mesmos e para os seus que o idiota do “doutor” aqui, descendente dos caras e com treze anos de ensino superior sobre a pobre cachola, penso que eles - meu pai e avô, sem contar o avô materno - me ensinaram mesmo tudo errado.

Me contaram também que havia umas coisas meio abstratas pra se buscar, que talvez dessem sentido ao absurdo do cotidiano. Seriam elas a fé, o amor e a família - não necessariamente nesta ordem.

Da primeira trago uma sensação incômoda e ridícula: a intenção de acreditar. Ou o hábito, ou o desespero mesmo, ou a simples consciência de que, se eu não acreditar mais em nada mesmo, então não vale a pena viver. Mas o “cara lá em cima” deve estar licenciado do cargo para permitir tanta barbaridade cá em baixo - e olha que eu nem estou falando das feitas em Seu nome.

Do amor trago dezenas de provas de sua inexistência e apenas uma bela pesquisa em andamento, até agora a única a não destruir o laboratório. Ainda não sei se as estatísticas ou a vida real ganharão a parada: aposto todas as fichas nesta menina que fiz minha senhora - como se dizia antigamente - e luto contra a frieza que a sucessão de dias e estórias imbecis, vividas antes de nosso encontro memorável, teima em gelar-me a alma.

Dela veio o menino; junto com ele as maiores alegrias, temperadas em minhas velhas e calejadas fibras miocárdicas, cada vez mais sensíveis ao espetáculo de sons e cheiros, cores e descobertas que só nos fazem lembrar, all the time, quanto a vida poderia ser bela (mas não é), e o quanto é, vai ser, sempre será, imensamente difícil não lhe ensinar tudo errado de novo, “como nossos pais”. E vem também o medo, sempre ele, a corroer-me os ossos toda noite com a perspectiva das dívidas e dificuldades, sempre as mesmas e sempre outras, a assombrar nossas cabecinhas de pai sejamos jovens ou velhos ou nem tanto, pobres ou ricos, loucos ou sãos.

Por fim penso nos outros, que um dia como este bebê que dorme agora ao meu lado, também chamei de “meus meninos”. Estes a vida me tirou, Deus ou o Diabo na terra do sol, por obra da pior má escolha que se pode fazer ou da pior “justiça” que um país possa ter.

Enquanto penso nos que me antecederam e naqueles que não coloquei no mundo para que me fossem tirados, rezo (mais) um prece por este piazinho paranaense de dois meses de idade, e acredito que em sua essência o ser humano é bom, e rezo prá ele com o chamado mais sincero que minha alma puder erguer aos céus, e enxergo nos pequenos atos da vida diária todo o amor desta mulher que sempre foi “por mim”, e ufa! me vejo em família, só nós três, e durmo feliz.

É isso aí. Dizem por aí que o único ser humano sem mácula também veio de uma família pequena e unida, que também teve o seu Egito para fugir, que só despontou em sua plenitude depois dos trinta anos. É isso, meu Deus. Que eu não tenha mais jeito, que se foda, mas que eu possa ensinar-lhe as coisas certas - inclusive uma boa ênclise.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 21/12/2006
Código do texto: T324808