Crônica de um amor louco*

Nunca escondi minha escancarada preferência pelos textos de Bukowski. Admito ter com eles relação de certa idolatria. Perguntem-me o porquê, indaguem-me as causas escondidas nas entrelinhas, e não terão qualquer resposta convincente.


Por mais que tenha lido, foi muito pouco. Não falo de Bukowski, é claro, falo de literatura. Que falta me faz a retórica retilínea de Shakspeare, as curvas que se avolumam nas poesias de Clarice, as referências afetivas de Jorge Amado, as figuras de linguagem de Cervantes.

Fui gostar de quem não gosta de mim.

Porque Bukowski não gosta de ninguém. Alicerçou sua vida – e sua obra, já que em seu caso não há como desassociar os conceitos – respondendo com desdém aos que jamais lhe perguntaram coisa alguma, mas o encararam (ou encarariam, se o conhecessem) como se nele reconhecessem a personificação do alijado social.

Nesse contexto, a obra do velho Buk perde em interesse. Afinal, espera-se dos rotos e descamisados, dos párias e congêneres, a verborragia inquieta dos que se reconhecem diferentes e assim caminham por ruas e vielas.

Talvez por isso a associação lógica de sua obra com a marginalidade, na acepção mais meticulosa possível.

Mas isso pouco importa, serve apenas como intróito ao que (também não) importa: sonhar com Bukowski assusta.

Mais ainda quando o sonho é de tal forma real que te faz sentir o vento batendo no rosto e as palavras trôpegas sendo assimiladas diretamente da fonte. A ambientação do sonho, do pesadelo que seja, pode até carregar alta dose de caricatura, mas garanto, vê-lo sobre o próprio túmulo, ébrio como ninguém, com os pés tocando o próprio epitáfio (Don´t Try), assusta.

Dizia-me Bukowski entre uma e outra golfada que eu não poderia jogar. – Você não pode jogar. Você é maluco se jogar. E ria, gargalhava.

- Preciso jogar, respondia com eloqüência. Temos campeonato na Croácia. Eu quero ir. Sábado eu vou jogar. Vou voltar ao futebol. É o que sei fazer. Acho que ainda consigo. Eles contam comigo.

Bukowski tem a cara arrasada pelas espinhas, pelo sol, pela bebida e pelo tempo. Um rosto encarquilhado. Voltava para a mesma nota: você não pode jogar. Vai morrer se jogar. Vamos ler alguma coisa, concluía, equilibrando a garrafa sobre a lápide.

Lemos o que já não me lembro, digressionamos sobre o que já não há, rimos sobre o que não sei.

Lembro de ter pedido ajuda. – Não, impossível. Isso não faz sentido. Você sabe que não acredito nessas coisas...  Eu contra argumentava, era inócuo. A única coisa que ele parecia falar com algum prazer era 'não jogue'. E falava sério.

Num átimo de segundo ele sumiu. Não o túmulo. Nem o epitáfio. Eu ainda estava lá. Sentia o mesmo vento, enxervaga a mesma grama com sua lápide encravada: Don´t Try.

Foi um encontro banal, desses que um fã com alguma sorte tem com seu ídolo. Não te ajudo, não quero mais ler, não temos mais o que falar. Não jogue!  

A cama era nova, a cidade era a outra. Na televisão, zumbindo sem volume, o show ainda acontecia. O abajur ao lado funcionou num clic. Uma pena.

Porque não há literatura, nem há saída, no branco do teto do quarto 507.

* Crônica de um amor louco, filme de Marco Ferreri sobre obra de C. Bukowski