Ô mundo cão

ATENÇÃO: esta é uma obra quase de ficção. Portanto, qualquer semelhança com fatos, pessoas ou lugares, terá sido quase coincidência.

Cresceu para cima da velha como um urso feroz. Onde se viu uma coisa dessas? Era sua vez de passar. Sinal verde, ó. Será que essa gente é cega? Com sua linda pik up zero km, preta, tunada e estribada, dois ponto qualquer coisa, sei lá quantos cavalos, vidro elétrico, injeção eletrônica e muitas outras qualidades que dá a qualquer idiota atrás do volante a sensação de que é o próprio Pemba. Quem tinha o direito de atravessar na sua frente daquele jeito?

Meteu o pé no freio provocando aquele ruído característico dos carros novos muito bem regulados e muito mal conduzidos. Dêem-me licença para abrir o maldito parêntese: (tem gente que acha chique cantar pneus. Podem me chamar de palhaço, já estou acostumado a esse título carinhoso. Chamo isso de imperícia. Quando escuto aquele ruído no trânsito sempre penso: é um mentecapto que não sabe dirigir, ou um daqueles inconseqüentes filhinhos de papai que nunca precisou ralar para saber o custo das coisas). Desceu do carro, de bermuda e camiseta, barriga enorme, cordão de ouro, cara larga e empapuçada de cerveja e churrasco, veias roxas riscando a fronte prenunciando um infarto a qualquer momento. Fez um drama, colocou a velha no seu lugar: - como é que uma múmia dessas sai sozinha de casa?

Quem leu a minha descrição do veículo já viu que não entendo nada de carros, né? Mas quem me conhece sabe que trabalho com gente idosa e acho apaixonante essa fase da vida. Assisti à cena com um profundo desgosto.

A anciã, muito humilde, olhava para ele assustada sem conseguir recuperar-se do susto. Seus olhinhos miúdos perscrutavam os arredores em busca de socorro. Súplica silenciosa de pecadora involuntária.

Para ela era o fim. Buscava em todos os circunstantes um socorro, alguém que pudesse lhe tirar dali e levar-lhe para a segurança de sua pobre vivenda. Quem sabe um dos filhos. Tinha poucos filhos, pobres, lutando com unhas e dentes para viverem com dignidade. O mais velho, coitado, sempre lhe explicava que nesta cidade peculiar onde viviam, havia três principais classes de pessoas, todas cheias de muita razão: os empresários, ditos empregadores que lutavam para reduzir o salário dos trabalhadores ao mínimo sustentável, os comerciantes que trabalhavam para elevar o preço das mercadorias ao máximo, e o proletariado que lutava para sobreviver entre essas duas forças. Ela não entendia muito bem essas palavras complicadas, mas acreditava muito no filho. Sabia que era um ignorante, sem estudo e com mania de honestidade, porém, sábio por natureza. Ele era o que mais se parecia com o pai, único homem de sua vida, falecido havia mais de dez anos.

Os nervos não se sustentaram. Os vistas escureceram. A última imagem que viu antes de perder os sentidos foi a do seu opositor virando as costas, voltando para a grande caminhonete e desaparecendo na confusão do trânsito.

Recobrou a consciência auxiliada por transeuntes desconhecidos. Ficou ali sentada ainda um pouco tentando conciliar as imagens da cidade onde nascera, vivera e criara seus filhos, com essa de agora que lhe parecia tão hostil. Na sua mente veio a imagem da cunhada pobre, mulher do seu irmão, honrada trabalhadora rural, necessitada de uma sutura, humilhada pelo médico do sistema público porque tinha os pés rachados e maltratados pelos afazeres diários da roça. Ô mundo cão!

Não era mais a sua cidade. Não mais a reconhecia. Não mais lhe pertencia. Saudades do seu velho marido que devia estar lhe esperando num lugar bem melhor.

Voltou para casa sentindo-se um estorvo para a cidade a que serviu sua vida inteira.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 01/10/2011
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