Texto introdutório a "Queer" - William S. Burroughs

Quando vivi na Cidade do México no final da década de 40, era uma cidade de um milhão de pessoas com um ar vibrante e um tom especial de azul no céu, que casava muito bem com os urubus voando em círculo, o sangue e a areia – o corriqueiro e perigosamente cruel azul mexicano. Gostei da Cidade do México já no primeiro dia da minha primeira passagem por lá. Em 1949 era um lugar barato para se viver, com uma grande colônia de estrangeiros, fabulosos prostíbulos e restaurantes, rinhas de galo e touradas, e qualquer outro entretenimento imaginável. Um homem solteiro podia viver bem lá com apenas dois dólares por dia. Meu processo por posse de heroína e maconha em Nova Orleans parecia tão pouco favorável que decidi não esperar pelo julgamento, de forma que aluguei um apartamento num calmo bairro de classe média na Cidade do México.

Eu sabia que submetido às leis de permanência não poderia retornar aos Estados Unidos por cinco anos, então tentei obter a cidadania mexicana e me inscrevi em alguns cursos de arqueologia maia e asteca na Universidade da Cidade do México. O intercâmbio pagava meus livros e aprendizado, e ainda cedia uma ajuda de custo de setenta e cinco dólares por mês. Eu pensava em me tornar fazendeiro, ou talvez abrir um bar na fronteira.

A cidade me atraía. As favelas pareciam mais sujas e miseráveis em comparação com as da Ásia. As pessoas defecavam nas ruas, depois deitavam e dormiam com as moscas entrando e saindo de suas bocas. Empreendedores, muitas das vezes leprosos, faziam fogueiras em becos e cozinhavam horríveis, fedorentas, inomináveis refeições, as quais depois naturalmente devolviam ao passeio. Bêbados dormitavam nas sarjetas da rua principal, e não havia policiais para interrompe-los. A mim parecia que todo mundo no México havia aprendido a arte de cuidar da própria vida. Se um homem queria usar monóculo ou bengala, ele não hesitava em faze-lo, e ninguém lhe concederia um segundo olhar. Garotos e rapazes caminhavam pelas ruas de braço dado e ninguém se importava. Não que as pessoas não se preocupassem com o que os outros pensariam; é que simplesmente jamais ocorreu a um mexicano esperar críticas de um estranho, nem criticar o comportamento dos outros.

O México possui basicamente uma cultura oriental que reflete dois mil anos de doença e miséria e degradação e estupidez e escravidão e brutalidade e loucura e terrorismo físico. É sinistro e desesperador e caótico, com o caos característico de um sonho. Nenhum mexicano realmente conhece qualquer outro mexicano, e quando um mexicano mata alguém (o que acontece com regularidade), é na maioria das vezes seu melhor amigo. Qualquer um que conviva com isso trará consigo uma arma, e em várias ocasiões li matérias a respeito de policiais bêbados que, após dispararem sobre os freqüentadores de um bar, eram eles mesmos atingidos por cidadãos armados. Como figuras de autoridade, os policiais mexicanos disputam com os condutores de bonde.

Todos os funcionários públicos eram corruptíveis, as taxas de juros eram muito baixas e o tratamento médico extremamente razoável, pois os médicos concorriam entre si e baixavam seus preços. Você podia tratar uma gonorréia com $2.40, ou comprar a penicilina e aplicar você mesmo. Não havia regulamentação contra a automedicação, e agulhas e seringas podiam ser compradas em qualquer lugar. Isso foi há muito tempo, quando o suborno era quem mandava e uma pirâmide de propinas subia do policial das ruas até o Presidente. A Cidade do México era também a capital mundial do assassinato, com o mais alto índice per capita de homicídios. Lembro-me de reportagens diárias, semelhantes às que seguem:

Um camponês está na cidade, esperando pelo ônibus: calções de linho, sandálias de tira, um enorme sombrero, um facão na cinta. Um outro homem também aguarda, trajando terno, olhando para seu relógio de pulso, nervoso, resmungando. O camponês saca do facão e corta fora a cabeça do sujeito. Depois diz à polícia: “Ele me mirava muy feo e finalmente não pude me conter.” É óbvio que o homem estava nervoso pelo atraso do ônibus e olhava para a via tentando vê-lo, quando o camponês interpretou mal sua atitude e na seqüência uma cabeça rolou pelo meio-fio, contorcendo horrivelmente as feições e exibindo suas obturações de ouro.

Dois camponeses estão sentados desconsolados às margens da estrada. Não têm dinheiro para o desjejum. Mas vejam: vem vindo um garoto que conduz várias cabras. Um camponês pega uma pedra e faz os miolos do garoto espirrarem. Os dois levam as cabras para o vilarejo mais próximo e vendem-nas. Estão comendo quando são detidos pela polícia.

Um homem vive numa pequena casa. Um estranho pergunta-lhe como pode encontrar a estrada para Ayahuasca. “Ah, é por aqui, señor.” Ele vai sendo guiado pelo homem por voltas e mais voltas: “A estrada é bem ali.” Súbito ele percebe que o outro não faz a menor idéia de onde fica a estrada, e por que diabos não ficaria furioso? Aí pega uma pedra e elimina o sujeito.

Camponeses apagam com pedras e facões. Mas ainda mais assassinos são os políticos e os policiais de folga, cada qual com sua .45 automática. Quanto mais se pratica, mais se acerta. Aqui vai outro caso banal:

Um político maquinado está com sua garota num bar. Um rapaz americano entra e senta perto dela, e então o machão brada: “CHINGOA!” Saca sua .45 e fuzila o rapaz ali mesmo, no balcão. Eles arrastam o corpo para fora e jogam a carcaça na rua. Quando os policiais chegam, o bartender dá de ombros e limpa seu bar sangrento, dizendo apenas: “Malos, esos muchachos!”

Todo país tem suas malditas regras próprias, como o xerife sulista que conta seus negros marcados, e o triunfal machão mexicano certamente estará lá quando as coisas ficarem feias. A maioria dos mexicanos de classe média encontra-se tão assustada quanto qualquer burguês no universo.

Lembro-me que no México as receitas para obter narcóticos eram reluzentemente amarelas, como uma nota de mil dólares, ou uma desonrosa dispensa do Exército. Uma vez Old Dave e eu tentamos passar uma dessas, que ele havia obtido legalmente do governo. O primeiro farmacêutico que consultamos recuou indignado: “No prestamos servicio a los viciosos!”

De uma farmácia para outra caminhamos, enervando-nos a cada passo: “No, señor...” Acho que andamos por milhas.

“Nunca estive por aqui antes.”

“Bem, vamos tentar em outra.”

Finalmente entramos em uma farmácia que mais parecia um buraco de rato. Saquei a receita, uma senhora grisalha sorriu-me. O farmacêutico olhou para a receita e disse: “Dois minutos, señor.”

Sentamos e esperamos. Havia gerânios na janela. Um garotinho trouxe-me um copo d’água, e um gato afiou as unhas em minha perna. Após algum tempo o farmacêutico retornou com nossa morfina.

“Gracias, señor!”

Uma vez fora, a vizinhança pareceu-nos encantadora: pequenas farmácias num mercado, caixotes e reservados, um botequim ao fundo. Quiosques vendendo gafanhotos fritos e doces de pimenta escuros com mosquitos. Garotos do campo em imaculados trajes de algodão e sandálias de corda, com rostos de cobre polido e enérgicos olhos negros e inocentes, feito animais exóticos, de uma beleza assexuada e radiante. Lá está um garoto de aspecto afiado e pele negra, cheirando a baunilha, uma gardênia na orelha. Sim, você encontrou um Johnson, mas chapinhou por toda Boçalândia para encontra-lo... e você sempre o fará.

Justamente quando pensa que todo o planeta é povoado exclusivamente por boçais, você encontra um Johnson.

Um dia ouvi batidas à minha porta às oito da manhã. Fui abrir ainda de pijama, e lá estava um inspetor da Imigração.

“Vista suas roupas. Você está preso.” Parece que a mulher do apartamento ao lado havia feito um longo relatório sobre minhas bebedeiras e comportamento impróprio, e além disso havia algo errado com meus papéis e onde estava a esposa mexicana que eu supostamente tinha? O Departamento de Imigração estava louco para me jogar numa cela onde eu aguardaria pela deportação como um estrangeiro indesejável. É claro, tudo poderia ser resolvido com algum dinheiro, mas meu interrogador era o cabeça do departamento e não estava para brincadeiras. Finalmente consegui escapar com duzentos dólares de propina. Quando voltava para casa do Departamento de Imigração, imaginei por que razão eu devia pagar se havia feito investimentos na Cidade do México. Pensei nos constantes problemas que os três proprietários americanos do Ship Ahoy deviam enfrentar. Os policiais vinham a todo momento para uma mordida, e então vinham os fiscais sanitários, e depois mais policiais tentando extorquir algum pela maconha e assim arrancarem um bom pedaço. Eles abordavam o traficante no centro e tiravam toda sua droga. Queriam saber onde Kelly estava, quantas mulheres haviam sido corrompidas com maconha, quem forneceu a erva? E por aí vai. Kelly é uma hipster americana que foi baleada no Ship Ahoy seis meses atrás, recuperou-se e agora está no Exército dos Estados Unidos. Nenhuma mulher jamais foi corrompida, nem ninguém jamais fumou maconha lá. Por essa época abandonei todo e qualquer plano de abrir um bar no México.

Um viciado lucra bem pouco com sua imagem. Ele veste as mais sujas, esfarrapadas roupas, e não sente necessidade alguma de chamar atenção para si mesmo. Durante meu período de vício em Tânger, eu era conhecido como O Homem Invisível. Essa desintegração da auto-imagem muitas vezes resulta em uma indiscriminada fome de imagens. Billie Holliday dizia que tinha plena consciência de ser uma drogada quando parava de ver TV. Em meu primeiro romance, “Junky” (Viciado), o protagonista Lee passa por integrado e autocontido, seguro de si aonde quer que vá. Em “Queer” (Bicha) ele é desintegrado, desesperado pela necessidade de contato, completamente inseguro de si e de seu futuro.

A diferença é simples: Lee, com a droga, sente-se coberto, protegido e também severamente limitado.

A droga não só causa um curto-circuito na função sexual, ela também anula as reações emocionais até seu quase desaparecimento, dependendo da dosagem. Rememorando as vivências de “Queer”, aquele mês alucinante de retirada aguda passou-se numa desagradável ambientação de perigo e maldade jorrando das luzes de néon dos bares, a horrível violência, as .45 sempre se mostrando. Com a droga eu estava isolado, não precisava beber, não precisava sair muito, apenas me aplicar e esperar pela próxima picada. Quando a capa da droga é removida, tudo que antes estava bem simplesmente desmorona. O viciado sem a droga está sujeito aos excessos emocionais de uma criança ou de um adolescente, não importando sua idade atual. E a função sexual retorna a todo vapor. Homens de sessenta anos experimentam sonhos molhados e orgasmos espontâneos (uma experiência extremamente insatisfatória – agaçant, como dizem os franceses). Apesar do leitor se esforçar para crer, a metamorfose do personagem Lee parecerá inexplicável, quase psicótica. Mas deve-se ter em mente que a síndrome da retirada é autolimitadora, durando não mais que um mês. E Lee passa por uma fase de bebedeira excessiva, a qual exacerba todos os piores e mais perigosos aspectos da febre da retirada: afrontoso, impudico, dissimulado – em uma palavra, alarmante.

Após a retirada, o organismo se reajusta e estabiliza no nível pré-droga. Na minha história, essa estabilização é finalmente alcançada durante a viagem a América do Sul. Não havia droga disponível, nem qualquer outro narcótico depois do paregórico no Panamá. A bebedeira de Lee fica reduzida a algumas garrafas após o pôr do sol. Ele não é tão diferente do Lee do posterior “Yage Letters” (Cartas do Yage), exceto pela fantasmagórica presença de Allerton.

Então escrevi “Junky”, e a motivação para isto foi comparativamente simples: expor nos mais acurados e simplificados termos minhas experiências como viciado. Eu ansiava pela publicação, pelo dinheiro, pelo reconhecimento. Kerouac havia publicado “The Town and the City” na época em que comecei a escrever “Junky”. Lembro-me de escrever em uma carta a ele, quando da publicação de seu livro, que o dinheiro e a fama agora estavam assegurados. Como se pode notar, eu não sabia nada sobre o negócio literário na ocasião.

Minhas motivações para escrever “Queer” eram mais complexas, e ainda não são claras para mim atualmente. Qual a razão para desejar relatar de forma tão minuciosa minhas extremamente dolorosas, incômodas e lacerantes memórias? Enquanto que havia sido eu quem escrevera “Junky”, sentia que eu é quem era escrito em “Queer”. Também estava rebuscando dores para assegurar o desenvolvimento do texto, e assim tornar as recordações menos dolorosas: escrevendo como se inoculasse. Assim que algo é escrito, perde o poder de surpreender, feito um vírus que perde sua vantagem quando outro vírus enfraquecido contribui para criar anticorpos mais resistentes. Portanto creio que adquiri imunidade aos muitos e patéticos eventos narrados ao longo destas linhas ao pôr minhas experiências no papel.

No início do fragmentário manuscrito original de “Queer”, tendo retornado do isolamento da droga para a terra dos vivos feito um frenético e inepto Lázaro, Lee parece determinado a pontuar – no sentido sexual da palavra. Há algo curiosamente sistemático e assexual em sua busca por um objeto sexual apropriado, indo de um candidato para outro em uma lista que parece ter sido compilada tendo em vista o fracasso definitivo. A nível muito profundo ele não quer ser bem sucedido, mas percorrerá qualquer distância para evitar se aperceber de que na realidade não procura por um contato sexual.

Mas Allerton definitivamente era algum tipo de contato. E qual era o contato pelo qual Lee estava procurando? Por este ângulo, parece ser uma idéia muito estranha que Allerton se desenvolva como personagem. Mas conquanto o viciado seja indiferente à impressão que cria nos outros, durante a retirada ele pode sentir a compulsiva necessidade de uma audiência, e então fica claro o que Lee procura em Allerton: uma audiência, o reconhecimento de sua performance, que é obviamente uma máscara para encobrir uma chocante desintegração. Então inventa uma frenética forma de prender a atenção que ele chama de Rotina: eletrizante, engraçada, hipnótica. “Era um Velho Marinheiro, o qual deteve um dos três...”

A performance toma a forma de rotinas: fantasias sobre Jogadores de Xadrez, o Homem do Petróleo do Texas, Gus Broa de Milho Escravo Usado Demais. Em “Queer”, Lee endereça essas rotinas a uma audiência atual. Depois, conforme se desenvolve como escritor, a audiência torna-se interna. Mas o mesmo mecanismo que produziu A. J. e o Dr. Benway, o mesmo impulso criativo, é dedicado a Allerton, que é forçado a assumir o papel de Musa aprovadora, no qual sente-se incompreensivelmente desconfortável.

O que Lee procura é por contato ou reconhecimento, como um fóton emergindo do caos da insubstancialidade para deixar uma impagável recordação na consciência de Allerton. Falhando em encontrar um observador adequado, é assombrado pela dolorosa dispersão, como um fóton não observado. Lee não sabe que já está condenado a escrever, desde que esta é a única forma que há de deixar uma recordação indelével, esteja Allerton inclinado a observar ou não. Lee é inexoravelmente pressionado para o mundo da ficção. Ele já fez a escolha entre sua vida e seu trabalho.

O manuscrito começa em Puyo, onde as estradas acabam... A busca pelo Yage fracassara. O misterioso Dr. Cotter quer apenas se ver livre de seus indesejáveis hóspedes. Ele tem a suspeita de que eles sejam agentes de seu engenhoso parceiro Gill, tentando roubar seu genial trabalho sobre como isolar o curare do veneno posto nas flechas. Ouvi falar que as companhias químicas decidiram simplesmente comprar flechas envenenadas em quantidade e extrair o curare em seus laboratórios na América. A droga foi logo sintetizada, sendo agora uma substância chave encontrada na maioria das fórmulas de relaxamento muscular. Então parece que Cotter não tinha na verdade nada a perder: seus esforços já haviam sido superados.

Fim da linha. E Puyo bem poderia servir como modelo para Onde As Estradas Acabam: um mortiço, insignificante aglomerado de casas com telhado de lata sob uma contínua chuva rala. A Shell partira, deixando seus bangalôs pré-fabricados e seu maquinário enferrujado para trás. E Lee chegara ao fim de sua própria linha, um fim implícito no começo. Ele é deixado com o impacto de intransponíveis distâncias, a derrota e a fadiga de uma longa, dolorosa jornada empreendida para coisa alguma, desvios errados, a estrada perdida, um ônibus esperando sob a chuva... de volta a Ambato, Quito, Panamá, Cidade do México.

Quando comecei a escrever este texto introdutório para “Queer”, encontrava-me paralisado por uma pesada relutância, um bloqueio de escritor semelhante a uma camisa-de-força: “Lancei um olhar ao manuscrito e senti que simplesmente não conseguiria lê-lo. Meu passado era como um rio envenenado do qual alguém afortunadamente escapara, e do qual este mesmo alguém sentia-se imediatamente acovardado, anos depois do acontecimento da coisa. Doloroso a ponto de eu considera-lo difícil de ler, desisti de escrever a respeito. Qualquer palavra ou referência a isto me deprimiria.” A razão para tal relutância se tornou clara quando me forcei a olhá-lo: o livro é motivado e formado por um evento que nunca é mencionado, e que de fato é cuidadosamente evitado: a morte acidental de minha esposa, Joan, em setembro de 1951.

Enquanto escrevia “The Place of Dead Roads” (Onde as Estradas Acabam), senti-me numa espécie de contato espiritual com o já falecido escritor inglês Denton Welch, e modelei o herói do romance, Kim Carson, exatamente de acordo com ele. E os capítulos vinham-me como que ditados, feito golpes espíritas no tampo da mesa. Escrevi a respeito da manhã fatídica em que ocorreu o acidente com Denton, o qual deixou-o inválido pelo resto de sua curta vida. Se tivesse ficado um pouco mais conosco, não muito, ele talvez tivesse perdido seu encontro com a motorista que atingiu a traseira de sua bicicleta sem qualquer razão aparente. Em algum ponto Denton parara para tomar um café, e olhando pelas vidraças da cafeteria, algumas delas partidas, fora atingido por um sentimento de derrota e desolação universais. Portanto todos os acontecimentos daquela manhã estavam carregados de uma significância especial, como se já estivessem previstos. Essa portentosa clarividência permeia todos os escritos de Welch: um biscoito, uma xícara de chá, um tinteiro adquirido por uns poucos shillings, tornavam-se carregados de uma especial e também sinistra significância.

Senti exatamente a mesma coisa, mas a um grau absolutamente incomparável, quando li o manuscrito.

Tudo começa quando Lee sente que foi inexoravelmente guiado para a morte de sua mulher pela sua própria mão, tem o conhecimento da possessão, de ter uma mão morta esperando ser vestida como uma luva. Uma bruma de caos e maldade emana das páginas, uma maldade que Lee, sabendo mas ainda não aceitando, tenta evitar com seus frenéticos vôos fantásticos: suas rotinas, que o deprimem pelo caótico horror que escondem ou do qual fazem parte, uma presença tão palpável quanto uma névoa.

Brion Gysin disse-me em Paris: “Um espírito feio baleou Joan porque (because)...” Um fragmento de mensagem mediúnica que não foi completado – ou foi? Não precisa ser completado, se for lido: “Um espírito feio baleou Joan para causar (to be cause)”, ou seja, para manter uma odiosa ocupação parasita. Minha idéia de possessão está mais próxima do modelo medieval que das modernas explicações psicológicas, com sua dogmática insistência de que tais manifestações devem ser provenientes do interior e nunca, nunca, nunca do exterior. (Como se houvesse significante diferença entre dentro e fora.) Quero dizer, uma entidade possessora definida. Concordo, o conceito psicológico funciona bem isolando as entidades possessoras, desde que nada é mais apavorante para um possessor do que ser separado da criatura invadida. É por esta razão que o possessor só aparece quando absolutamente necessário.

Em 1939 interessei-me por hieróglifos egípcios e procurei conversar com alguém do Departamento de Egiptologia na Universidade de Chicago. E algo me berrava nos ouvidos: “VOCÊ NÃO PERTENCE A ESTE LUGAR!” Sim, creio que os hieróglifos forneciam uma chave para o mecanismo da possessão. Como um vírus, a entidade possessora deve encontrar uma porta.

Esta foi a primeira indicação clara de algo em meu ser que não era eu, e que não estava sob meu controle. Lembro-me de um sonho desse período: eu trabalhava como exterminador de pragas em Chicago, na década de 30, e vivia em uma pensão próxima ao North Side. No sonho eu flutuava perto do teto com um sentimento de morte e desespero completos, e olhando para baixo via meu corpo saindo pela porta com idéias homicidas.

Alguém pode perguntar se o Yage talvez não tenha salvo o dia com alguma ofuscante revelação. Lembro-me de um cut-up que fiz em Paris anos atrás: “Ventos crus e despelados de ódio e desventura expeliram o tiro (shot).” E por anos pensei que se referisse a uma dose (shot) de droga, quando a droga é injetada de dentro de uma seringa ou conta-gotas direto para a veia. Brion Gysin apontou seu real significado: referia-se ao tiro que matara Joan.

Eu havia comprado uma faca Scout em Quito. Possuía cabo de metal e um curioso ar de antigüidade, como algo adquirido em uma loja de velharias da virada do século. Eu podia vê-la num catálogo de facas antigas, com sua lâmina prateada descascando. Eram quase três da tarde, poucos dias depois de eu voltar do México, e decidi que queria afiá-la. O amolador de facas possuía um canto curto e uma rota fixa, e enquanto caminhava pelas ruas procurando seu carrinho tive uma sensação de perda e tristeza que pressentira o dia todo, então mal pude respirar por um longo momento, tão longo que quando percebi havia lágrimas escorrendo por toda a minha face.

“O que há de errado?”, pensei.

Tal forte depressão e sensação de ruína ocorrem repetidamente no texto. Lee costuma atribui-las a seus fracassos com Allerton: “Uma barreira pesada freou seus movimentos e pensamentos. O rosto de Lee ficou rígido, sua voz morreu.” Allerton acaba de recusar um convite para jantar e sai abruptamente: “Lee olhou para a mesa, o raciocínio lento, como se estivesse congelando.” (Lendo isto sinto-me frio e depressivo.)

Aqui está um sonho precognitivo da masmorra de Cotter no Equador: "Ele estava diante do Ship Ahoy. O local parecia deserto. Podia ouvir alguém chorando. Viu seu filhinho, e ajoelhou-se tomando a criança nos braços. O som do lamento foi se aproximando, uma onda de tristeza. ...Apertou o pequeno Willy fortemente contra o peito. Um grupo de pessoas estava lá, enfiadas em seus ternos Convict. Lee perguntou-se o que estariam fazendo ali, e qual o motivo de estar chorando.”

Forcei-me a lembrar do dia em que Joan morreu, daquela transbordante sensação de ruína e perda... caminhando pelas ruas subitamente percebi as lágrimas banhando meu rosto.

“O que há de errado comigo?” A pequena faca Scout com cabo de metal, a lâmina descascando, seu odor de moedas antigas, o canto do amolador de facas... Que ação poderia ocorrer com esta faca pela qual eu não fosse inteiramente responsabilizado?

Fui forçado a concluir que nunca teria me tornado escritor se não fosse pela morte de Joan, e abri meus olhos para a percepção de que esse acontecimento motivou e alimentou minha literatura. Eu vivia com o constante pavor da possessão, com a constante necessidade de escapar da possessão, fugir do Controle. Então a morte de Joan pôs-me em contato com o invasor, o ‘Espírito Feio’, e conduziu-me a uma vida inteira de lutas, na qual não tive outra opção além de escrever.

Obriguei-me a fugir da morte. Denton Welch é uma de minhas faces. Odor de moedas de ouro. O que quer que ocorra com esta faca chamada Allerton, voltará contra a escandalosa Margaras Inc. Uma percepção é basicamente formulada fazendo? O dia da ruína e da perda de Joan. Percebeu lágrimas jorrando de Allerton descascando a mesma pessoa como um pistoleiro do velho Oeste. O que é que você está reescrevendo? Uma vida inteira preocupado com Controle e Vírus. Tendo obtido acesso o vírus usa a energia do hospedeiro, seu sangue, carne e ossos para confeccionar cópias de si mesmo. Modelo de dogmática insistência nunca nunca da ausência berrando em meu ouvido: “VOCÊ NÃO PERTENCE A ESTE LUGAR!”

Uma camisa-de-força anotada cuidadosamente paralisada com forte relutância. Para escapar de suas linhas pré-escritas anos depois os eventos recordados. Um bloqueio de escritor teria evitado a morte de Joan. Denton Welch é a voz de Kim Carson através de uma nuvem sobreposta a uma mesa quebrada.

William Seward Burroughs – Fevereiro de 1985

(Tradução de Damnus Vobiscum)

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 04/10/2011
Reeditado em 17/05/2012
Código do texto: T3257859
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