Teste de audiência

As primeiras cenas deram boa noção do que seria o resto de filme. As tomadas meticulosamente planejadas tinham a clara preocupação de escancarar que o argumento seria muito mais induzido do que exposto. Menino e menina se olhavam numa Porto Alegre de vinte e cinco anos atrás. Brincavam com um chapéu amarelo.

O anúncio de três linhas do caderno de cultura do jornal curitibano anunciava o teste de audiência. A partir das dezoito e trinta poderíamos pegar gratuitamente a senha de acesso ao cinema da Caixa Econômica, localizado no centro nervoso da capital. Uma hora depois começaria o filme, ainda pendente de edição final de som e imagem.

"Cinema", pensei, "é uma boa forma de espairecer, de esquecer de tudo, de silenciar esses gritos. Um rápido banho, um jeans, uma camiseta e um táxi de dez minutos.

'Menos que nada. um filme de Carlos Gerbase'. O anúncio do senhor que faria as vezes de mediador fez com que eu procurasse posição mais confortável na cadeira da última fila. Já havia visto - e gostado muito - do longa "3 efes", do mesmo diretor, exibido no Canal Brasil. Ganhamos relatórios para preenchimento e lápis com ponta bem afiada. Queriam do público curitibano as impressões para arremate final do filme, que será lançado nos próximos meses em todo o país. A razão de serem os curitibanos os escolhidos para a tarefa me seguem inconclusivas.

Com uma ou outra exceção as atuações são de encher os olhos dos mais críticos. Boa fotografia, roteiro excelente e argumento que alia bom entretenimento com competente direção.

Um excelente filme sobre amor e loucura, ainda que tal associação pareça mais evidente do que nos provam empiricamente os casais de todos os cantos do planeta.

Mas o filme acaba, o amigo querido me espera pro chopp e eu dou dois minutos para o debate com a produtora do longa. Moça simpática e de competência, para mim, absolutamente recém comprovada.

O primeiro a pedir o microfone se apresentou como Ivan, cinéfilo. "Não gosto dos filmes do Gerbase", iniciou. Para prosseguir: "A nível de conceitos obnubilados pela interface sistêmica do cinema nacional - se enquadrado dentro da retórica rodrigueana de análise perfunctória da realidade - é de fácil análise que a práxis contextualizada na película remeteria ao novo enquanto repisa o sempre...".

Um senhor de óculos, calça cáqui e camisa vermelha, lá debaixo: "Ivan, de novo não. Vai encher o saco de outro e deixa a moça falar".

Deixei a sala no meio dos gestuais de Ivan e daquele senhor.

Não, o cinema não me deixou esquecer.

No chopp, em meio aos efusivos abraços de amigos que se gostam, um presente: 'O ex-estranho', livro de poemas inéditos do curitibano Paulo Leminski.

Página 31, a primeira que abri.

"Misto de tédio e mistério / meio dia /meio termo / Incerto ver nesse inverno / medo que a noite tem / medo que o dia acorde mais cedo / e seja eterno o amanhecer"

Não, o chopp não me deixaria esquecer.