Minha Hebe

Minha Hebe

Quando menina, eu fazia leituras adultas. Aliás, era tempo em que crianças eram vistas como adultos reduzidos a miniaturas . E as minhas leituras e atitudes eram de gente grande e logo comecei a ver o mundo com olhos maduros e, não raro, endurecidos e medrosos pelos tempos da ditadura.

E sempre tive no autoritarismo um desprezo pétreo. Mais: intensa repulsa misturada a indignação e certeza do seu colapso um dia.

Acompanhei e vivi intensamente todas as formas de oposição ao governo forte. Já nos meus primeiros tempos de vida acadêmica, a minha militância era cotidiana: através do conhecimento, procurava esclarecer, dar aulas, formar opinião na juventude, fazer leituras mais coerentes com propostas de vida. E apoiava incondicionalmente todo e qualquer movimento social a favor da democracia e pela volta ao Estado de Direito.

E Sempre valorizando a cultura, eu freqüentava assiduamente os museus da minha São Paulo.

E valiam todos: MASP, MIS, MAM, Arte Sacra. Todas as formas de manifestação do tempo eram válidas para uma pessoa que vivia à procura constante do mais.

Foi do Museu da Imagem e do Som, na avenida Europa, que guardei nas retinas a expressão mais exata da ditadura argentina tendo como base uma peça de escultura: era a representação das Mães da Praça de Mayo, todas abraçadas numa dor infinita e inenarrável, formando uma roda e seus rostos, cabisbaixos, não apareciam. Todas elas na mesma dor, que me provocava a lembrança da dor de Nossa Senhora ao ver seu filho morto.

As mães da Praça de Mayo se organizaram em Associação no auge daquela ditadura para exigir do governo militar informações sobre o paradeiro dos seus filhos levados pelo arbítrio e, sobretudo, exigir justiça contra os crimes hediondos praticados pelo sistema. Com um lenço branco na cabeça, passaram, silenciosamente, a caminhar pela praça central de Buenos Aires, rodeando a Casa Rosada, numa típica passeata de resistência, buscando soluções, visibilidade e importância social para uma dor sem fim. Todas as quintas-feiras, infalivelmente, elas estavam lá, buscando os seus filhos, de alguma maneira. Logo os militares passaram a chamá-las de “As loucas da Praça de Mayo”, alegando que não haviam matado ou torturado ninguém. Mas as “madres” continuaram ali, com os seus cartazes, as fotos dos filhos seqüestrados e desaparecidos. “Com vida os levaram, com vida os queremos”...

Muito desse sangue escorre pela mão aberta que se exibe, enorme, na entrada do nosso Memorial da América Latina, no bairro paulistano da Barra Funda. Quantos sonhos que se esvaiam, quanta vida e energia e fé tragados pelo tempo!... Quantas lágrimas grossas de sal foram enxugadas por lenços odiosos, que nunca consolaram ninguém, mas apenas ajudaram a postergar a dor maior das certezas malditas! Quantas rezas, quantos terços com suas contas quentes pelos dedos desesperados foram tomados pela fé teimosa e titubeante!

Foi de Hebe de Bonafini a iniciativa de se promover a associação com outras mães de desaparecidos políticos para se cobrar esclarecimentos dos donos daquele podre poder, na época centralizado nas mãos do carrasco Jorge Rafael Videla. Hebe, esse nome de origem grega que significa juventude, foi buscando vida onde não mais havia! Foi tentando reescrever a história com a pressa da mãe que sonha para o filho aquele futuro diferente do seu... ah! Aquele futuro: de vida plena, estável, cheio de amor intenso e verdadeiro. Um amor capaz de constituir eventualmente uma nova família e deixar como herança os melhores olhares e vozes numa busca inesgotável de justiça, serenidade, com uma união pautada no progresso da matéria e do espírito.

Mas os filhos se foram e nem puderam, nem por um segundo sequer, tocar amorosamente o rosto da mãe, que passou a chorar copiosamente e para sempre. Nunca mais o sorriso, uma teima, um pedido de uma boa comida, um passeio. Nada. A vida passou a ser a mistura de choro amargo e inconsolável com luta, indignação com busca, fé e esforço descomunal pela volta.

Com dois filhos e uma nora desaparecidos, Hebe um dia afirmou:"Nós acrescentamos um sentido à maternidade, a socializamos". Do simples ato de entregar uma carta ao Papa João Paulo II até abrir processos judiciais na Alemanha, França, Itália, Espanha, entre outros países europeus, as Mães da Praça atravessaram com seus lenços brancos fronteiras do mundo inteiro.

E foi naquela tarde, não me lembro de que ano, acompanhada do meu marido, no MIS, que passei a sentir a dimensão absurda da dor da perda. Principalmente uma perda para a morte no sentido mais sórdido. Foi no MIS!

Com muito carinho, quem sabe um carinho de filha solidária, ontem fiz uma escultura chamada “Hebe”.

Sozinha, aquela mulher, de lenço branco na cabeça, com a mão direita sobre o coração e a esquerda no rosto, pensava e buscava a maior resposta de toda a sua existência.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 07/10/2011
Código do texto: T3263301