Crônica #083: ENQUANTO OS RINS TRABALHAM...

Era em torno das 20h 30min.

No pacato vilarejo reinava a mais perfeita paz. As famílias se divertiam em frente ao aparelho de TV, assistindo ao seu programa preferido. Geralmente apreciando mais um capítulo da novela ou um novo episódio de um famoso seriado. Particularmente detesto novela e mais ainda seriados. Destes nunca assisti o epílogo, gerando em mim certa ânsia e talvez algum tipo de trauma. Preferia e ainda prefiro um filme com um bom argumento, principalmente os de capa espada, aventura, enredos de época e de guerra e ficção científica.

Tinha um sonho de ser artista de cinema e me pegava várias vezes divagando numa fantasia de como seria se eu frequentasse os sets das filmagens, os jet sets sociais etc. Tomei até aulas de cinema, não só de como atuar diante de uma câmera quanto até mesmo sobre todo o processo de filmagem, diretor, contrarregra, câmeras, roteiros, maquiagem, iluminação, protagonista e atores coadjuvantes e seus dublês. Eu ficara tão envolvido com a ideia que fui escolhido para fazer parte de um filme. Seria o protagonista. Só disso fiquei sabendo e mais nenhum detalhe.

Muitas coisas mudaram e, converti-me ao Evangelho, fato este que me afastou da equipe de cinema e o meu sonho foi adormecido e descartado. Ainda bem, pois não sei o que seria de mim, se isso tivesse se tornado realidade. Não teria privacidade, pois esta seria constantemente invadida devido a fama ou não. Talvez um pelotão de paparazzi a vigiar-me noite e dia atrás de um furo fotográfico ou, quem sabe, participando de um chato programa dominical, onde o bobão que gosta de aparecer iria me encher a paciência com perguntinhas idiotas que eu nunca conseguiria responder, não porque não as soubesse de tão triviais que são, mas pelo fato de ele falar demais e nunca deixar os seus entrevistados responderem a pergunta, interrompendo com um dispensável comentário. Isso me deixaria fulo de raiva.

Assim, naquela fatídica noite, quando tudo parecia normal, sobreveio-nos repentina destruição. Os céus de Vila Pacífica foram rasgados por esquadrilhas de guerra dos Alepés, e nos bombardearam sem dó nem piedade. Fomos pegos de surpresa que nem deu para mandar as mulheres e crianças para um lugar seguro. Houve muitas baixas, de imediato, mas logo, logo nos tornamos numa heroica resistência, empunhando metralhadoras de topo, última geração que nem sei de onde surgiram, mas chegaram em boa hora. Várias esquadrilhas desenhavam trilhas nos céus com suas luzes a traçarem linhas imaginárias. Seria um belo espetáculo se não estivéssemos em plena guerra.

De repente, um bombardeiro aproximou-se por cima de nós. Empunhamos nossas metralhadoras numa eficiente bateria antiaérea destruindo um a um.

Como o paiol fora improvisado, logo, logo, as munições foram-se rareando e com isso a deserção foi inevitável. Só eu e mais uns dois permanecemos resistindo heroicamente. Fiquei sem munição e pedi reposição. Para a minha surpresa, não havia mais ninguém no paiol a não ser duas crianças e um octogenário que me forneceram duas pistolas e dois rifles de coronha rachada. Era uma tremenda heresia pensar que eu iria defender nosso vilarejo só com essas acanhadas armas contra aquelas fortalezas voadoras.

Um bombardeiro sobrevoou sobre nós e despejou bombas que mais pareciam tambores de carboreto de solda de acetilênio. Se tivessem contato com a água explodiriam na certa. Por sorte nossa, caiam nas calçadas. Próximo a nós, ruas aquáticas, como em Veneza, fluíam, servindo de leito aos braços de mar que cortavam o vilarejo. Sorte nossa. Elas rolavam ladeira abaixo para irem explodir no mar a um distância considerável, o que nos dava mais segurança.

Recusei-me a atirar com aquelas armas, já que nunca pratiquei tiro ao alvo e certamente não conseguiria contra-atacar os nossos adversários voadores. Mas estava ali sem saber nem como nem porque assim, do nada, vi-me numa guerra que não fazia o menor sentido. Até parecia cenas de um pesadelo e rogava a Deus para que tudo aquilo não passasse de um terrível e tenebroso sonho, fruto do meu criativo cérebro, enquanto meus rins trabalhavam e purificavam o meu precioso sangue. E estive ali, resistindo bravamente até o último instante quando, enfim, acordei e vi que tudo não passava de um simples sonho e finalmente pude respirar aliviado e desfrutar da paz que reinava em nosso lar.

Minha esposa, a ressonar ao lado. Então eu despertei e vim correndo escrever, antes que isto fosse apagado de minha memória.

Alelos Esmeraldinus
Enviado por Alelos Esmeraldinus em 11/10/2011
Reeditado em 11/10/2011
Código do texto: T3269621
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