A cantiga do zombeteiro

Ele bocejou novamente, e agora, mais alto do que as outras vezes. Minha paciência acaba! Eu já não estava aguentando mais aqueles sons.

“Para com isso, por favor!” Pedi. “Isto me irrita”. Já fazia horas que ele estava me provocando com seus provérbios sem fundamento e seus bocejos longos e agudos.

“Os incomodados que se mudem”, disse bocejando. Senti muito ódio e tive vontade de matá-lo. “Além de tudo ele é mal-educado”, pensei.

O silêncio não durou nem um minuto depois que reclamei, aliás, o abrimento de boca aumentou. Aspiração longa e expiração demorada com um som que dava nojo. Uma mistura de uivo com grunhido. “Uuuuaaah! Uuuuaaah! Uuuuaaah!” Eram suas exclamações ininteligíveis.

Quando pedi novamente para ele parar com aquilo, ele me disse para tapar os ouvidos. Continuou depois bocejando: “Uuuuaaah! Uuuuaaah!”

Perguntei se ele não sabia bocejar sem fazer aquele barulho, pois era falta de educação. “Uuuuaaah! Uuuuaaah! Uuuuaaah!” Foi sua resposta, como se estivesse ensaiando uma cantiga, que acabara de ser composta por ele e que seguia um ritmo doentio. Sinistro.

Todos os dias ele começa por volta das oito e meia, fazendo sempre as mesmas coisas: boceja várias vezes e depois, zombando, ri até começar a tossir, quando se recupera do ataque de tosse, ri novamente. Fala mais um provérbio de botequim, sem nenhum sentido. “Já terminou? Eu não entendi”, digo tentando irritá-lo também. Não consigo.

Quando eu reclamo, ele simplesmente faz mais barulho para me incomodar. Lembro-me que ontem foi igual, aliás, semana passada foi igual e o pior é que amanhã também será igual, depois e depois, com certeza também será.

Talvez o errado seja eu, afinal me irrito facilmente e, até o barulho das hélices do ventilador me atrapalham na hora que estou trabalhando. Elas tiram minha concentração. Fico ouvindo o barulho do vento sendo soprado pelas hélices e me descontrolo.

“Uuuuaaah! Uuuuaaah!” Ele continua. Pare! Pare! Pare! Quero gritar. Ele estica os braços, espreguiça, abre a boca num longo bocejo, urra e bate com as mãos na mesa. Os olhos cheios d’água brilham em seu rosto vermelho.

“Ih! Ih! Ih! Ih! Ah! Ah! Ah! Ah!” Ele ri irônico. Pigarreia e ri alto outra vez. É uma risada descompassada e sem harmonia. “Este local é público”, diz para me irritar.

Aspira puxando o ar com força e fazendo ruídos asquerosos, e depois solta o ar em seus bocejos intermináveis, entoando outra cantiga qualquer. Tosse, pigarreia, boqueja, zomba, ri, arqueja e segue com sons onomatopeicos e gestos estranhos de um louco. Tudo com um tom de escárnio. Agindo sempre como impudente.

“Ronc!” Pigarreia alto, acha bonito e ri. “Ridículo”, eu penso. Não sabe que pigarrear assim repetidamente pode causar mal a suas pregas vocais!

“Deixa de ser chato”, digo. “Tape os ouvidos, este local é público”, reforça sua fala anterior e sorri. “Mentecapto”, sussurro.

Ofereço-lhe uma bala de menta para aliviar a irritação na garganta e que talvez lhe tire o sono. Ele pega, olha, olha, e guarda a bala na gaveta. Não entendo. Será que ele acha que eu coloquei alguma coisa na bala? Acha que eu coloquei veneno? Só pode!

Ele liga o som e uma musiqueta triste que fala de alguém que morreu queimado começa a tocar. A música segue lenta e triste, dá vontade de chorar... De raiva. De raiva dele!

Peço para ele colocar outra música, pois a que está tocando é muito triste. Ele responde que gosta desta que está tocando. E me manda tapar os ouvidos outra vez. Um bocejo desafinado e triste acompanha a melodia fúnebre. Fico com mais raiva por que ele faz isto de propósito. Só para irritar. Não é possível alguém ser tão chato assim!

“Ih! Ih! Ih! Ih! Ah! Ah! Ah!Ah!” Ri louco e depois confirma o que eu já sei: “Somos todos dementes”. Ele sim é demente.

Pergunto se ele não dorme de noite. “Meu neném não deixa”, ele responde. “Tire um cochilo no almoço”, digo. “Não dá tempo”, ele fala. “Eu cubro seu tempo. Tire uma tarde de folga”, falo tentando ajudar! “Os incomodados que se mudem. Uuuuaaah! Uuuuaaah! Uuuuaaah!” É de propósito, só pode ser de propósito. Ninguém pode viver assim? “Ignorante”, sussurro. Ele se encurva, passa a mão na careca, volta o corpo ao normal e ri.

A música toca novamente e ele acompanha com sua cantiga: “Uuuuaaah! Uuuuaaah! Uuuuaaah!” Parece que não vai ter mais fim. “Deus!”

Torço para que o dia acabe logo. Não consigo mais me concentrar em nada, o serviço não rende, o dia fica mais comprido. Só consigo ouvi-lo arfando. Boi velho bufando. E hoje ainda é quinta-feira.

Ele tem também uma constipação incurável, cada dia que passa é pior. Quando ele espirra faz um barulho alto e bate os pés no chão. Parece um animal, um bicho do mato ou algo parecido. Talvez um ET? É isso, um ET! “ET, ET, ET...” Falo mentalmente.

Sente-se o dono da sala e acha que sempre está certo em tudo. Não posso esquecer a sua mania de perseguição e a desconfiança de que todos estejam contra ele. Insuportável.

Até entendo seu cansaço e seu sono, mas o que eu não suporto e critico é o barulho que ele faz. Realmente precisa fazer este barulho? Não! E depois do almoço, com o ‘bucho’ cheio e o computador dando sono, fica ainda pior e a sequência de bocejos aumenta.

Todo mundo boceja, não faz sinfonia como ele, mas boceja. Todo mundo tosse, não faz terremoto, mas tosse. Todo mundo pigarreia, mas não de dois em dois minutos. Será que eu é que estou estressado? Ou errado? Ou... Louco?

“Uuuuaaah! Uuuuaaah! Uuuuaaah!” Pausa. “Uuuuaaah!” Continua. “Argh!” Sinto enjoo. “Ih! Ih! Ih! Ih! Ah! Ah! Ah! Ah!” Zomba.

Não aguento. Saio da sala. Abro a boca em um bocejo longo, também estou cansado, porém não faço barulho. Dizem que é só você ver alguém bocejando que você começa a fazer o mesmo. É o corpo reagindo à falta de uma boa noite de sono. Vou à cozinha, tomo um café e de lá ouço seus bocejos:

“Uuuuaaah! Uuuuaaah! Uuuuaaah!” Continua o zombeteiro com sua cantiga desconexa.

“Pare com isso...” Alguém grita em outra sala, reclamando. No entanto os bocejos continuam pelo resto do dia.

Valdecir Ravazi
Enviado por Valdecir Ravazi em 17/10/2011
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