A PEQUENA CASA DE MINHA MÃE

A PEQUENA CASA DE MINHA MÃE

A casa de minha mãe era bem pequena, não mais que um quarto, sala e um “puxado” no quintal, embaixo da janela da sala. Ela fizera deste espaço uma cozinha com fogão à lenha, uma mesa para refeições e uma tosca prateleira para as panelas de ferro. Ao lado do puxado ela construiu um forno, também à lenha, no chão um quadrado de tijolos para assar uma “carninha”, também à lenha, que depois de queimada se transformava em braseiro, e nesse braseiro a carne era churrasqueada. Mais adiante, num corredor ao redor da horta, um banheiro. Em casa de pobre, nos idos de 40/50, o banheiro era externo ao principal da casa. Quanto aos móveis, apenas o extremamente necessário. No único quarto, um guarda roupas, uma cama de casal, uma cama de solteiro encostada à parede, uma sapateira feita de ripas. Um maleiro de metal – meu padrasto guardava coisas incríveis nessa mala, desde roupas do tempo em que serviu o exército até pregos que encontrava na rua, e eventualmente, quando eu saia de férias do colégio, eu dormia em cima dessa mala, em forros de panos colocados para amaciar o contato. Acima da cama de casal um quadro do Coração de Jesus e, ao lado, um crucifixo de madeira. No tampo da sapateira, dois vidros de perfume Royal Briar, um cheio e um vazio, um pente, um pote de creme, Antisardina, uma caixinha com rouge e batom, uma caixa de pó-de-arroz Lady – ela era vaidosa, minha mãe! Na minúscula sala apenas o imprescindível: um conjunto de sofá e duas poltronas, estilo império, uma mesinha de canto suportando o rádio, uma cantoneira com um vaso de samambaia. Em uma das paredes sem recorte um quadro de minha mãe ainda jovem, em moldura de madeira escura, e uma cópia da Santa Ceia. No assoalho, em frente ao sofá, um tapete de sisal tecido em tramas largas e com as pontas reviradas pelo uso. Na entrada da casa, um capacho de fibra de coco e, ao lado, uma chapa estreita de ferro fixada em dois tocos de madeira para tirar barro dos sapatos.

O marido de minha mãe – meu padrasto – levantava-se cedo e preparava o café da manhã. Abria a torneira, enchia com água fria o ebulidor, ligava na tomada e, enquanto esperava a água ferver, preparava a mesa, colocando as canecas de folha de flandres, o açucareiro de ágate branco, a tábua de madeira com o pão feito em casa e embrulhado em uma toalhinha bordada e ao lado um faca serrilhada. Colocava o pó de café no coador de pano com suporte de alumínio, jogava a água fervente do ebulidor em cima do pó de café, mexia com uma colher de pau e aguardava o líquido cair no bule de ágate branco pintado com flores vermelhas e folhas verdes. Depois de coado, tampava o bule e o colocava em cima de um aparador de sisal já manchado de café. Sentávamos à mesa em silêncio de espera por um dia como todos ou outros dias. Levantávamos da mesa ao mesmo tempo e cada um de nós seguia sua rotina de trabalho ou de escola. Apenas minha mãe ficava em casa para cuidar dos afazeres domésticos. Mas, a novela das onze do rádio – Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nos idos de 50 – interferia na sua rotina de dona de casa. Chegávamos para o almoço, logo após a novela das onze, e precisávamos aguardar o término da novela, quando ela ia pra cozinha preparar o almoço. Uma lástima! Todos com fome – eu com fome de adolescente – e o almoço por fazer. O almoço ainda quente era engolido às pressas, pois já chegara o momento de voltarmos para o segundo tempo do trabalho. Ela se aborrecia com o nosso questionamento, mas no dia seguinte tudo voltava ao que fora antes, na "marquês de abrantes". A novela das onze acabaria novamente depois de chegarmos cansados e famintos. Meu padrasto a amava muito e a perdoava por esses pecadilhos.

Mas mamãe não tinha somente a novela a lhe entravar o cotidiano. Antes da novela, ela plantava hortaliças na horta, tomates, chuchu, couve, cheiros verdes, repolho, escarola e rúcula, e flores no pequeno jardim, mas entulhado de plantas, tudo sem cuidado, aleatoriamente no pequeno espaço. Fazia pão em casa, às quartas-feiras, juntamente com as comadres, minhas tias e vizinhas, pois elas aproveitavam o forno de lenha construído por minha mãe no quintal. O cheiro do pão assado era incrível. Neste mesmo forno à lenha eram assados os bolos de mandioca plantada em seu quintal, e bolo de fubá feito na brasa, em cima do braseiro do fogão a lenha. Preparava conservas de cebolas, pepinos, chucrute, pimentas verdes e vermelhas, todos esses legumes plantados por ela em sua horta. Criava galinhas e patos e vendia os ovos. As penas dos patos, quando eram preparados para consumo, eram tratadas e recheavam travesseiros. Criava cabras e vendia o leite, e cuidava ainda de um gato e dois cachorros. Foi uma mulher simples e talentosa. Tinha seus defeitos, mas não vamos citá-los, não é.... Apenas o indispensável para não chegar à perfeição!

Era mística e profundamente religiosa – rezava um terço antes de dormir – iniciou os filhos todos na sua crença. Ria com facilidade, a vida lhe dera tudo que sempre desejara. Inconscientemente, sempre desejou somente o possível, e por isso não se frustrou. Procurar a felicidade foi o lema em sua vida. Se outros desejos lhe passaram pela cabeça, eu jamais soube. A vida lhe dera tudo que sempre quis. Folheava revistas de modas, escolhia um modelo e cosia para si mesma. As cortinas da casa eram confeccionadas por ela. Sentia um prazer enorme com suas “reinações”. Sua infância foi traumática, pois trazia no corpo todo marcas de cortes causados por uma madrasta violenta, com instintos perversos e sem escrúpulos. As marcas no corpo não significaram nada para seus dois amores. Não deixou de ser amada por isso. Tinha recordações dessa violência, mas jamais interferiu no seu prazer de viver.

Os amigos a estimavam muito. Em seu casamento, cuja festa durou um dia e três noites, os amigos compareceram e festejaram muito. Houve tocador de sanfona, cantoria, presentes, e até o pároco da igreja do bairro foi convidado e compareceu. Minha mãe não tinha família, mas a família do meu padrasto era imensa. Todos compareceram. Jamais os vi mais felizes. Ele a amava tanto que a perdoava sempre e dizia, quando pedíamos a ele que interferisse em seus desmandos: Deixa, ela quer assim... Ela sabe o que faz! Faleceu aos 103 anos, nem feliz e nem infeliz. Desde os 60 anos sofreu do mal de Alzeimer. Esse mal se instalou, logo após o falecimento do marido. Até no dia da morte de seu companheiro, minha mãe estava tranquila. Ela se desligou do presente que sem companheiro não fazia sentido. Deixou a vida e levou consigo a gloria de ter sido uma pessoa muito amada. Deixou também, sem o saber, uma mensagem a quem quiser entender como tal: "Pobreza não é sinônimo de infelicidade."

Agora, atendo o telefone... Desde ontem toca, eu atendendo e, do outro lado, nada. Ouço apenas um funga-funga. Não sei quem é. A criatura não responde do outro lado. É um idiota... Mas, não me perguntem o porquê dos telefonemas anônimos, mas eles me levaram a recordações de uma vida diferente da minha, sem os atropelos e interferências da modernidade. Tenho tudo que sempre desejei, mas não tenho a despreocupação que fez dos dias de minha mãe uma passagem sem tropeços.

Diante da janela aberta do meu destino vislumbro o destino de minha mãe e o comparo ao meu. Chego à conclusão que eu me estressei muito mais que o necessário. O nível de desejos na minha vida foi alto demais e a luta para alcançá-lo levou-me a caminhar por trilhas em vez de estradas asfaltadas. O telefone tocou novamente. Deixei-o fora do gancho. A “múmia” que está me ligando vai ficar frustrada, com certeza. A indiferença mata a alta estima de qualquer um. Sigo em frente, que atrás vem gente, e volto ao meu texto, uma catarse que há muito tempo deveria ter produzido.

Estou tranquila e feliz. Atrás de mim tenho dois vasos repletos de margaridas, uma branca e outra amarela e, com a pata em cima do meu laptop, minha gata Nina ao meu lado com o focinho encostado na minha mão esquerda me alegra muito. Olho pela janela do meu apartamento e a chuva cai intermitente – está chovendo a dois dias – provocando em mim a sensação de lágrimas de esperança pelo sol que irá brilhar amanhã iluminando e aquecendo o meu jardim que terminarei de renovar. Está ficando lindo!

CC -18 de outubro de 2011

Esturato
Enviado por Esturato em 17/10/2011
Reeditado em 15/11/2012
Código do texto: T3282447
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