Composições Emotivas da Infância

Na infância a nossa rua é a única no mundo, é o único mundo a nossa rua. Todas as trepadeiras desafiando o concreto, espalham-se por todos os muros e quando chove acabo por admitir que em algum momento de seus cem anos de vida, Garcia Marques passou por aqui. Não existe outra explicação!

Na praça ao alcance das mãos, minúscula miniatura de Navarone espia todas as horas. Antigamente quando ainda trepava goiabeiras, cansei de montar o velho canhão e galopar o imaginário. Imaginário de criança é coisa fértil, cresce, desmembra-se e alcança o infinito. Ali defendi os pobres padres da igrejinha matriz, desbravei as margens do Rio Nioaque e ganhei todas as guerras. À tarde passei por lá. As esvoaçantes palmeiras seguiram meus passos, cochichando velhas traquinagens, lamentando o tempo. Lamentei também.

De volta ao hotel encontrei alguns amigos. Entre eles um me chamou e perguntou de papai, se volta com tempo de comemorar anos em casa. Adimirado com a simplicidade e com o coração acelerado sentei-me ao seu lado para observá-lo melhor. Os olhos de gente séria e o jeito único de falar comigo desde meus oito anos. Havia enfim encontrado a minha cidade. Não aquela que me comoveu pelas transformações inevitáveis da passagem dos anos, mas a minha cidade da infância que estava guardada, viva naquela cabecinha branca. Antes de conseguir responder alguém soprou a palavra caducando em meus ouvidos e a mágica se desfez.

Infelizmente não pude iniciar a conversa que talvez aquietasse meu saudoso coração. Não pude perguntar de Dona Mirtes e seus pastéis de vento e do cãozinho Lopito, companheiro nas aventuras pelos quintais da vizinhança. Poderíamos ficar ali horas conversando, longe dos olhos do tempo, em um vagão esquecido na curva daquela mente totalmente esquecida. Não haveria a intromissão das vozes deste presente imperfeito. Apenas ele, o jovem borracheiro de mãos encrespadas pela lida e em sua frente eu, aquele guri arteiro com os joelhos cheios de cascões, dedos dos pés embrulhados pelos trapos que mamãe sempre usava como curativos e o piguá sujo onde carregava estilingue e as sementes de mamona pra caçar passarinho na beira do rio. Havia ali o meu mundo a ser descoberto e eu queria descobrir de novo, mas não pude. Apenas sorri e respondi que papai não chegaria.

Continuei caminhando os paralelepípedos com a imensa dor de ter perdido duas vezes as composições emotivas de minha vida. Visitei ainda alguns amigos, agora pais e mães como também eu sou. Fui até a casa onde nasci, á casa da primeira namorada e enfim visitei todos os que conheci no pequeno cemitério. Fiquei algum tempo observando o túmulo daquela menina, deixei-lhe um ramo de flores e nada de encontrar comigo mesmo e a minha antiga ânsia de viver. Comecei a sentir angustia e uma imensa solidão. Eu tinha conseguido estragar a lembrança mais bonita da criança que fui com aquela visita despropositada a minha cidade natal e resolvi partir na mesma hora, antes que o estrago fosse ainda maior se é que isso era mesmo possível.

Desajeitado tropecei em uma lápide desgastada pelo tempo, cai e ouvi uma risada. Reconheci imediatamente, Magrelo, mesmo com a barbicha rala e sem a cabeleira de roqueiro rebelde eu o reconheceria em qualquer lugar. O Magrelo que por resoluções extraordinárias do universo tornou-se coveiro. Ainda lembro todas as vezes em que ele chorava pra não pegar a bola quando caia perto da porta do cemitério. Agora estava lá tranquilo e feliz mandando os cidadãos de Nioyorque para o descanso eterno. A simplicidade de seu gesto e a total falta de compostura daquela sua gargalhada infantil me fizeram rir também, mas vontade era de chorar de felicidade por tê-lo encontrado, claro não ia ser muito apropriado a um quarentão e me contentei com um abraço.

Depois de alguns minutos, ainda com o rosto encharcado daquela sublime súbita surpresa falamos de nossas vidas então, contamos das façanhas e desfiamos as nossas derrotas sem a menor vergonha de nossos próprios erros, o que era desnecessário, pois sabíamos mais um do outro do que qualquer outra pessoa. Ele me falou de todas as mortes e seus efeitos eu desterrei todas as minhas mágoas e no final consegui me encontrar novamente nos olhos amigos daquele homem ao qual tantas vezes chamei de irmão. Estava em casa afinal.

Visitei sua família, esposa, dois filhos e um cachorrinho esperto ao qual ele deu o nome de Pelé o mesmo nome de todos os cães que teve na vida. Andamos pela cidade lembrando o tempo em que íamos ver TV todas as noites na Pracinha e a desta vez consegui encontrar minha cidade, rindo das graças dos pequenos imitando nossas histórias de “gente grande”. Estava terminada esta página, eu já podia ver todos os outros capítulos desenhando-se a minha frente e quando no outro dia arrumei as malas e peguei a estrada, no espelho retrovisor pude ver além da folhas novas das palmeiras imperiais.

à Nioaque