CULTURA DO DESVIO

Prof. Antônio de Oliveira

antonioliveira2011@live.com

No sermão do bom ladrão, em 1655, Padre Antônio Vieira acrescentou que se usava a conjugação do verbo “rapio” não só para além do Cabo da Boa Esperança mas também nas partes daquém. Em 2011, verifica-se que as partes daquém não mudaram, pois o verbo desviar, que se conjuga como furtar, continua amplamente usado. Com efeito, conjugam por todos os modos o verbo desviar, porque desviam por todos os modos da arte, não falando em outros modos, e esquisitos, como dinheiro na cueca.

Tão logo chegam lá começam a desviar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos mais experientes é que lhes sinalizem corredores e elevadores por onde transitar livremente. Desviam pelo modo imperativo, porque despoticamente se aplicam aos exercícios do desvio, arrebanhando quantos com eles colaborem e excluindo todos os que se recusam. Desviam pelo modo optativo, reforçado pela teoria do desejo de Freud, porque desejam quanto lhes apeteça. Desviam pelo modo conjuntivo, meeiros na ganância. Desviam pelo modo potencial, sem pretexto nem cerimônia. Desviam pelo modo permissivo, usando uma corrente de liberalidade. Desviam pelo modo infinitivo porque, sai governo entra governo, lá deixam raízes em que vão continuando os desvios, portanto em todos os tempos, pretérito, presente e futuro: do presente colhem quanto dá de si; do passado aguardam a prescrição dos desvios e, do futuro, aguardam dias promissores, em cargos vitalícios, de confiança deles, ou reelegendo-se.

Também, por todas as pessoas, eu, tu, ele, ela; nós, vós, eles, elas. Afinal, sempre dá para lavar a burra, quando não para lavar a égua, pois o cofre está bem ali e sua guardiã, a República, não está nem aí... Além disso, é fácil desviar sem deixar lastro nem cheiro.

Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos (plusquam perfeitos, na linguagem clássica de Vieira), porque desviam, desviaram, desviavam, desviariam, e haveriam de desviar mais, se mais houvesse. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa e o povo suportado toda a passiva, eles, ricos, e como se tivessem prestado bons serviços, e o povo, esse, apenas um detalhe despojado.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 23/10/2011
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