UMA PENSÃO FUMAÇA

Raymundo de Salles Brasil

Todo estudante tem histórias para contar. Quem passou por essa fase da vida, quase sempre recheada de deveres, pouquíssimos direitos, e para compensar muita irresponsabilidade, sabe que é utopia imaginar que seus filhos não aprontaram. Histórias, as mais diversas aconteceram e acontecem hoje, das dramáticas às hilariantes, mas todas elas, contadas depois de que tudo se passou, muito engraçadas. As que eu sei dariam, certamente, alguns belíssimos contos, caídas na pena hábil de um contista de verdade. Na sua falta, arvorar-me-ei de sê-lo, para contar-lhes uma, que até hoje me enche de pejo.

Todos na quadra dos vinte anos, todos buscando um lugar ao sol, mas, aqui e acolá, ainda fazendo coisas absurdas, que só o jovem pode fazer e ainda, passadas algumas décadas, se dar ao direito de contá-las sem que lhe tire hoje a condição de homem sério, probo e digno de toda respeitabilidade, em fim, coisas do passado, vistas como coisas da juventude.

Uma pensão de estudantes: Rua Direita da Saúde – uma rua torta, como são todas as ruas direitas que eu conheço – n. 2, um velho bicentenário casarão no bairro de Nazaré, na capital da Bahia. Pela sua idade e pelo seu porte deve ter uma história, e deve ter sido palco de muitas outras. Eu participei de uma, vou contá-la: Não se suscetibilizem os meus comparsas se não era de seus pensamentos que fosse revelada uma história já apagada pelo tempo.

Dona Simplícia era a dona da pensão, uma mulher de poucas letras, mas de um tino comercial invejável e de uma capacidade de trabalho que deixava o seu marido, seu Deraldo, frustrado, pois ele mal tinha ânimo para pegar as malas dos hóspedes, quando bem instigado a fazê-lo pela sua consorte; o que ele gostava mesmo era de fumar o seu charuto pacífica e tranqüilamente, sem ser incomodado e sem incomodar. O casal tinha um filho, foi o máximo de esforço que seu Deraldo pôde fazer, mas o fez bem, porque Edvard era um rapaz bem afeiçoado, de compleição saudável, um bom estudante, e inteligente. Era nosso companheiro de todas as horas, menos no que ferisse os interesses da pensão, obviamente, de que era extremamente zeloso.

Dona Simplicia viera de Santo Amaro para estabelecer-se em Salvador visando abrigar uma leva de estudantes que saia do antigo Ginásio Santo-Amarense para fazer o curso colegial e outros que já entravam nas universidades, certa de que eram rapazes de família, de boa educação, (e eram sem dúvidas) mas sem imaginar que dentro de cada um deles dormia um menino travesso, pronto para acordar a qualquer momento.

Era uma festa a nossa convivência; todos nós trabalhávamos ou estudávamos ou as duas coisas, mas, nas horas vagas nos reuníamos para desfrutar de uma mocidade sadia, inteligente, viva; fazíamos festas, serenatas, namorávamos, conversávamos, divertíamo-nos; foi uma quadra inesquecível na minha mocidade. Todos, ou quase todos, caboclos da mesma aldeia.

A maioria saldava religiosamente os seus compromissos com o caixa da pensão, outros por contingências que não me convém aqui citar, atrasavam seus pagamentos, o que dificultava a boa administração da empresa, levando a sua direção (Dona Simplicia e Edvard), como medida compensatória, a tomar a decisão drástica de diminuir o “rango” dos esfomeados jovens estudantes.

Houve um protesto dos bons pagadores que estariam, como justos, pagando pelos pecadores; mas ao fim todos se acumpliciaram no sentido de ir à represália. Aproximavam-se os festejos de São João, nos céus da Rua Direita da Saúde já se ouviam, aqui e acolá, os estampidos de alguns foguetes e lágrimas de fogos de artifício, que, de vez em quando, se confundiam com as estrelas cadentes, enquanto as bombas pipocavam nas calçadas lançadas pelas mãos traquinas dos adolescentes que inspiraram tanto as nossas mentes maquiavélicas.

A idéia não foi minha, poderia ter sido, mas me confesso tão culpado quanto. Entre as tais bombas tocadas inocentemente pelos adolescentes, havia uma, a maior de todas, que sozinha causava um estampido ensurdecedor. Esta foi a escolhida para o nosso plano hitleriano.

O velho sobrado tinha duas entradas, uma delas, a mais utilizada pelos hóspedes, era lateral – um portão de ferro dava acesso ao pátio que ia ao longo do prédio até um alpendre contíguo, de um lado, à cozinha e do outro à sala de refeições. Nós morávamos no andar superior e para esse pátio abriam-se as janelas de todos os quartos, as dos hóspedes incautos e as dos maquiavélicos.

Descrito o cenário vamos ao plano diabólico e à cena dantesca:

Inacreditável que jovens tão bem educados pudessem urdir semelhante absurdo. Mas estudante é assim, nunca foi diferente, tirando aqueles que excepcionalmente são bem comportados, todos aprontam. O que importa é que não foi por mal, foi uma brincadeira que fizemos sem que atinássemos para as conseqüências. Nós éramos 16 estudantes que se transformaram todos, sem exceção, em homens de bem, de conduta ilibada, vejamos:

Num dos quartos moravam os quatro irmãos Araujo: Otávio, já falecido (economista), Francisco Otávio (advogado), Jaime Otávio (geólogo) e Hamilton Otávio (médico veterinário); Noutro moravam os dois irmãos Bastos: Walter e Mário (contadores); Noutro os Valladares: Mário e Flávio (advogado e médico respectivamente); noutro Geraldo Castro (médico); noutro Romil e Carlos Rosa (um advogado, o outro professor); no outro Edmundo Caroso (fiscal da receita federal e virtuose do cavaquinho) e por fim num outro quarto morávamos, eu, meu irmão Rodrigo, já falecido e meu primo Afonso, aposentado da Petrobrás. Quem diria!

O plano era o seguinte: cada um compraria uma daquelas bombas monstruosas a que já me referi, e levaria para o seu quarto guardando todo o segredo da arma do crime; às 10 horas da noite todos apagariam as suas luzes como se fossem dormir o sono dos anjos; todos os relógios previamente acertados; às 12 horas (meia noite) em ponto, quando todos os hóspedes já deveriam estar dormindo, Jaime Otávio acenderia um fósforo como sinal e aí, sim, todos, de uma só vez, acederíamos as nossas 15 bombas e jogá-las-íamos ao longo do pátio no meio do silêncio daquela famigerada noite de junho de 1953.

Dito e feito: buuummmmmmmmmmmm!

Desculpe-nos Edvard, não foi por mal.

Dona Simplícia! Que Deus a tenha.

Raymundo de Salles Brasil
Enviado por Raymundo de Salles Brasil em 26/10/2011
Código do texto: T3299745