O facão do Severino

_ Seu Carlim?

Acordei com a impressão de ter ouvido voz de mulher e choramingos de criança. Na noite escura e fria, implorei aos céus que fosse só um sonho.

_ Ô, Seu Carlim.

Não era um sonho.

Sacudi minha mulher:

_ O que foi?

_ Tem alguém chamando. Vou atender.

_ A essa hora?

_ Pois é! Não é estranho?

Acendi a luz. Eram duas horas. Enquanto me vestia o chamado se repetiu duas vezes. Reconheci a voz de Marli. É problema! Pensei.

Ela estava de pé no meu portão. Com a criança recém nascida nos braços, a de um ano enganchada na cintura, as outras duas de dois e três anos penduradas em sua saia. Logo que me viu saudou-me com sua costumeira risada, duzendo no seu sotaque pernambucano:

_ Seu Carlim, eu vim pidi pouso pro sinhô. É mode que Lino qué matá nóis cu facão.

Lino é como ela tratava o amásio Severino. Estávamos, minha mulher e eu, mais alguns vizinhos, assistindo àquela família a cerca de três meses, desde que chegara do Nosdeste. Vieram trazendo três crianças e aquela quarta por nascer a qualquer momento. Severino ergueu em terreno ocioso do Governo, um barraco de varas, tábuas velhas e folhas de chambre sucateadas em construções. Ali a criança vira a luz, por milagre muito saudável. Todo cidadão de minha cidade comhece pelo menos uma história como essa. As pessoas se compadecem, começam a levar doações e a família vai ficando por ali. Sem capacitação para o tipo de trabalho que o polo calçadista tem a oferecer, vão sobrevivendo precariamente, à margem da sociedade, sem uma ajuda efetiva além do assistencialismo.

Abri o portão e coloquei todos para dentro, não sem antes confrir a rua deserta se não vinha alguém armado de facão.

Acomodadas as crianças em minha sala, em colchões estirados plo chão, Marli explcou, no seu esquisito linguajar e rindo sem parar, como se contasse um caso engraçado ocorrido a outra pessoa, que Severino havia arranjado trabalho como servente de pedreiro, trabalhara a semana inteira, recebera o ordenado e foi direto para a zona onde "socô tudo no rabo das quenga", chegou em casa embriagado, "muntio dôidio" e ela o repreendeu. Foi aíque ele pegou o facão.

Não preciso dizer que não tivemos lá em casa uma noite muito tranquila. Esperar a qualquer momento por um homem enfurecido, armado com um facão vir arrancar sua prole de suas unhas, não é definitivamente uma experiência muito agradável. Na minha insônia, o coração disparado a qualquer ruído, (é duro ser medroso e não ser covarde! Tais produtos tinham que vir no mesmo pacote), eu pensava no que faz um pobre vivente se envolver em tais complicações. Em problemas de outras pessoas. Acordei, depois de ligeira madorna, com a gostosa risada de Marli, (ela ri na cara de sua desgraça. Isso é que é coragem!), já conversando com minha mulher na mesa do café. Ria despreocupada, como não consigo no meu melhor domingo de sol. Era como se não tivesse qualquer problema.

Chamei dois vizinhos até minha casa e expus-lhes a situação. Decidimos ir falar com o valentão. Ele saiu do barraco e veio ao nosso encontro, picando fumo para o cigarro de palha com o famigerado facão. Parecia de muito mau humor e com uma leve ressaca. Quando eu disse a que estávamos lá ele disse apenas:

_ Diz a ela que pode vortá pra casa, seu Carlim. Vô mais matá ela não sinhô. Só vô cortá uma das orêia.

Pode?

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 29/10/2011
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