Defasados

“Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou, tempo de matar e tempo de curar, tempo de derribar e tempo de edificar, tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de saltar de alegria, tempo de espalhar pedras e tempo de juntar pedras, tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar, tempo de buscar e tempo de perder, tempo de guardar e tempo de deitar fora, tempo de rasgar e tempo de coser, tempo de estar calado e tempo de falar, tempo de amar e tempo de aborrecer, tempo de guerra e tempo de paz." (Eclesiastes, 3:1-5).

Tempos defasados, ações fora de ordem, datas trocadas. Será fundamental a ordem cronológica? O tempo não é uma invenção do homem – sim, o é o calendário, mas na natureza há um tempo certo para tudo. Hoje eu vejo claramente: atropelei fases como um furacão que passa derrubando tudo em seu caminho, ainda que às vezes algo oculto e protegido siga intacto. Adiantei algumas etapas, atrasei outras, e eis-me aqui hoje, no tempo de agora, perdida entre mundos e escolhas que já deveria ter feito ou fases pelas quais ainda não deveria ter passado.

Segui regras e normas quando deveria me rebelar, enlouqueci quando já deveria ser sã. Usei o espírito saltando a vez da pele, libertei minha pele ignorando a época do espírito. Suportei cargas treinando minha paciência numa época em que outras pessoas deveriam ter paciência para comigo; agora que quero a contrapartida, é o tempo em que devo doar-me cada vez mais. Na hora em que deveria, como parte de um saudável aprendizado, ser irresponsável e inconsequente, era séria e madura; agora, na maturidade, a conduta esperada é traída. Brinquei de ócio quando a energia estava no topo e hoje me desgasto perseguindo o adiado sucesso. Rejuvenesci meu espírito à custa de inversões de ordem, fiz escolhas certas nas épocas erradas - morei num asilo para idosos na adolescência e hoje brinco num play ground apesar dos insistentes cabelos brancos que teimo em ocultar sob a tinta.

Sinto saudades do que deveria estar vivendo e ao mesmo tempo uma curiosidade infinita pelo que já deveria ter vivido. Mas, mesmo me guiando por esse relógio sem hora que é meu coração – ou talvez justamente por isso - encontrei você.

Pontualmente atrasados, chegamos ao mesmo tempo ao nosso encontro sem hora marcada, num horário de verão em pleno junho. Continuamos invertendo tempos, atrasando datas, adiantando horas; dando de ombro às convenções, arqueando sobrancelhas incrédulas, despertando invejas saudáveis. Atemporais, o que nos basta é deitar fora as agendas, os relógios e os calendários e nos guiarmos apenas pela luz ofuscante do sol, pela luminosidade baça da lua... e pelo reflexo de ambos na prata de nossos cabelos.

Como você mesmo me disse um dia, somos espectadores conectados ao fenômeno; e por isso, enquanto estivermos juntos, você não envelhecerá aos meus olhos e eu não envelhecerei aos seus. Resta-nos, então, procurar o equilíbrio sobre esta ponte entre dois mundos distantes no tempo, sem que nos confundamos na sequência dos atos: mesmo sem saber se ontem foi mesmo, um dia, o hoje – e se amanhã ainda será, ou já passou...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "O relógio do coração".

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