A corista

Trazemos tatuada no corpo a frivolidade de nossa juventude. Minhas mãos estão diante de mim, digitando, em automático, palavras que se sucedem sem se completarem. Sonhei com uma corista do Theatro Muncipal. Linda ela. Dizia-me gostar de samba, mas não acho que estivesse falando a verdade. Suas bochechas estavam maquiadas com pequenos brilhos coloridos que, como estrelas, iam e voltavam a cada palavra, a cada ligeiro balançar de cabeça.

A corista me fez lembrar da menina do playground. Olhava-a assustado enquanto preparava em surdina palavras que, já sabia, jamais diria. Brincávamos juntos. Eu a obedecia em quase todas as brincadeiras que ela propunha. Menos no futebol. No futebol eu a ensinava a chutar e a tabelar contra a parede. Fazíamos gols imaginários, gols que iam muito além da risca de giz que impúnhamos à parede bege ladrilhada. Ela Fla, eu Flu. A menina do playground um dia não mais desceu e desconfio que aquele caminhão com um enorme gato preto pintado na lataria a tenha levado para outro bairro, outra cidade.

Acho que o sonho com a corista foi fruto da roda de samba. Mas na roda de samba ela não era corista. Era a única moça a cantar em volta da roda, na segunda-feira de primavera mais triste já vivida por esta cidade. Estava numa cadeira de rodas e cantava a plenos pulmões. Sem maquiagem.

No sonho saímos eu a corista. Pegamos a Rio Branco, descemos até a esquina da Rua do Ouvidor e cruzamos a Primeiro de Março em direção à Rua do Mercado. Se algum dia eu puder escolher onde morrer, gostaria que fosse próximo à Praça XV.

Foi lindo vê-la escolher um livro. Havia um enorme palhaço sorrindo à frente de um fundo laranja. Dois cafés; depois mais dois; e mais dois. Não sei se por descuido, mas a corista sumiu. Num pluft, num átimo, numa esquina.

O que me fez lembrar de novo da menina do playground.


Minhas mãos continuam digitando sem porquês, que evidentemente não se completam e nem servem de complemento a mais nada. Talvez ainda queiram escrever sobre o sonho, que prosseguiu pela Rua do Rosário até a esquina com a Rua do Carmo, onde não gostaria de morrer.

O sonho da juventude era diferente deste de agora. O sonho da juventude tinha ondas que se imolavam contra as rochas. Com força, numa profusão de espuma e barulho, como que ao dizer “olha a força que eu tenho”; ou “olha a velocidade com que eu venho”.

Tantas vezes sonhei o sonho bom de tomar distância e ganhar o céu. Vê melhor quem vê de cima, diz o clichê. Voar sobre o mar ainda hoje me reconforta, ainda que apenas em lembrança. E mais do que o coração a bater em descompasso, havia o ar fresco que oxigenava pulmões inteiros e fortes, pulmões que tantas vezes respiraram com siso quando percebiam que dor era apenas a onda que imolava antes da cicatrização.

Ainda procurei a corista. Fui até o improvável canto da cidade que atravessa a Presidente Vargas. A idade nos traz a vantagem de sonhar com alguma consciência e a desvantagem de conscientemente continuar sonhando. Nada.

Amarelinho, Odeon, Santa Luzia, escadaria do Municipal.

A menina do playground uma vez me disse ter vontade de fazer um pacto de sangue. Diante de minha hesitação mostrou-me a agulha que desembrulhou delicadamente de papel higiênico. Ela era Fla, eu Flu. Acho que foi nisso que pensei quando estendi o dedo antes que as duas pequenas gotas virassem uma grande borra no indicador.

É engraçado, chovia muito no sonho. Chovia, mas não me molhava. Talvez seja por isso que continuamos sonhando: conseguimos, mais e mais; e mais e mais; e a cada dia mais, controlar os sonhos que temos.

Que molhasse, afinal!

Mesmo molhado seria só voar. Voar molhado, encharcado pela chuva que lava. Levantar vôo na Cinelândia seria tão simples... Centro, Glória, Flamengo, Botafogo, Urca. Ondas imolam nas pedras da Urca.

Mas não pude; ou não quis; ou sei lá o quê. Acho que foi porque hoje, a meios pulmões, já sei que, na verdade, dor é a onda que imola antes da cicatriz.