80 passagens pouco alteradas

Creio em meus oitenta anos de vida, nunca ter feito uma viagem igual a esta.

Levantei da cama como um jovem, minha úlcera não mais atacava, minha artrite nem sinal de presença.

Era madrugada ainda, saí por todos os cômodos da casa enorme onde consegui unir uma família inteira de 4 gerações, no sexto quarto, a mais recente destas gerações estava no berço acordada me olhando, sorrindo e me dando tchau...

Em cada quarto integrantes da família me traziam recordações:

Papai, é aquela a garota!

No dia anterior, surpreendi meu filho de treze anos chorando num canto do quarto, ele não fazia o tipo machão, sabia desde cedo que seria sentimental, alguns diziam que seria gay, eu não teria nada contra, apoiaria, neste dia senti o quanto o garoto era humano, sinto até que havia deixado de ser tão duro com as coisas da vida, aprendi muito com aquela cena.

Ele acabara de ver a garota que amava, beijando um rapaz, e sentia-se culpado por não ter coragem de falar nada a ela, agora havia perdido.

Como todo bom jovem eu já havia passado por cena semelhante nesta fase, e via uma oportunidade única de voltar ao meu passado com a cabeça de agora, pouco mudada.

Saímos em frente de casa no momento em que ela ia para a escola, passei a vê-la de forma diferente, pensei que disputaria com meu filho, senti-me um pedófilo de início, mas na verdade vi que tinha me apossado dos sentimentos do menino, pois é assim que devemos fazer quando resolvemos tomar qualquer atitude, sentir de verdade.

O namorado chegava próximo a ela neste momento e ela nem olhou na cara, claramente haviam brigado, típica cena de traição.

O que veio depois muitos roteiristas romancistas já escreveram e todos conhecem.

O mundo conspirou a favor de meu filho que naquele dia criou coragem e foi até lá falar com ela.

Bom, a cena que os romancistas não escreveram, era a que estou vendo no momento, um cinquentão em plena atividade sexual com sua esposa, a mesma do parágrafo anterior, ah seu eu tivesse esse pique ainda...

No outro quarto, minha neta de seus vinte e poucos anos, acordada ainda, assistindo filmes eróticos, na minha época isso era para garotos, mas ela devia estar estudando para alguma peça nova que faria, era atriz, quando se reúne tantas gerações em uma casa é necessário primeiramente entender as diferenças de cada um; e aceitá-las...

Por último, meu neto mais novo no quarto da prima, ambos se lambuzando, que horror, minha casa está uma verdadeira decadência...

Foi quando saí na rua e vi inúmeras mortes acontecendo, diversas brigas diferentes da minha época, em que a valentia era disputada no braço, não a dedo.

Várias prostitutas com histórias diferentes, que os pais não sabiam da atividade, ou que, para sustentar-se e manterem suas idéias, foram obrigadas a neste mundo entrar.

Vi diversos adultérios, passei por casas de políticos em constantes jogadas de pôquer, apostando o que não era de seus pertences.

Vi policiais corrompidos, com as garotas acima dentro de suas delegacias pagando favores.

Vi camelôs chorando por não pagarem seus impostos e verem a prefeitura recolher tudo, e ao mesmo tempo vi a distribuição daqueles brinquedos a crianças carentes filhas de administradores municipais.

Sem falar das guerras que passei, estratégicamente planejada por exemplos da sociedade.

Enfim, descobri que minha casa era ainda a das melhores do mundo e que agora, aos trinta e cinco anos, ver minha filha de 17 anos me informando da gravidez era só motivo de felicidade e que daqui até meus oitenta anos ainda vou manter 4 gerações sob meus braços.

As passagens daqui em nada são novidades, são fatos do dia-a-dia da velha hipocrisia, o que muda são os números, e aos poucos, muito aos poucos, as pessoas e as atitudes, essas sim podem ser renovadas a cada virada, desejo um feliz 2007