“Não tem bactéria”

Eu estava prestes a me formar na universidade. Coisa interessante! Olhando para trás, percebo o quão insana foi aquela experiência. Desde o início a minha vida estudantil foi muito difícil. A aprendizagem lenta me constrangia . Quantas situações humilhantes! E eu acabei me fazendo no exagero das tentativas.

Nos anos de USP, poucas horas de sono, andanças intermináveis. E eu tinha que estudar dentro do ônibus em movimento, porque o tempo era por demais escasso para dar conta de livros e livros. Ia balançando tudo e isso para mim era terrível. No metrô, era bem mais fácil, mesmo em pé a leitura era feita a contento.

E foram muitas as vezes que eu comia pouco. Não dava tempo. Numa das vezes, em casa, abandonei o prato de comida ao meio porque senão chegaria tarde naquele primeiro colégio que lecionei, o Conde José Vicente de Azevedo, no bairro da Saúde, na capital paulista.

Tempos de entusiasmo sem fim: a ditadura estava prestes a ser enterrada, com o suor e sangue de tantos que lutavam por dignidade. Dar aulas de história nesse contexto era fascinante. Era o sentimento mais extasiante, iluminado, promissor que eu jamais imaginara. Falar para alunos, olhar para os jovens com ar de esperança, vibrar juntos sem nenhuma vergonha. Numa das manhãs, eu não me lembro mais exatamente qual era a situação, eu disse, radiante, para as alunas lutarem pelos seus direitos e elas me aplaudiram entusiasticamente naquele momento, com olhos brilhantes e com a energia perfumada de primavera. E tudo isso era tão novo! Novo como a construção de vida que aqueles jovens estavam tentando. Novo era o falar, o respirar. Nova era a esperança.

Eu estava desafiando o tempo. Até cheguei a não me sentir cansada, a não me importar em andar de ônibus lotado demais. Tudo era exato no sentido da conquista.

Eu até aturava com naturalidade uma diretora prêmio Nobel de grosseria. Mas eu não me importava com ela. Como ainda hoje não me importo com pessoas desclassificadas. Apenas me calo e fico de olhar vago tentando compreender o quanto deve ser difícil viver a infelicidade e a pequenez . Eu simplesmente vivia, atuava e acreditava no mundo.

Nesse Colégio, no Conde, havia um bibliotecário educadíssimo, sempre bem-humorado e pronto para atender. E eu sempre fazendo as retiradas e, às vezes, fazia a devolução no limite do prazo. Sentado, de roupas claras, ele me dava um tempo maior para a entrega, continuava realizando os empréstimos e tratava a todos com muita elegância.

E a cada justificativa de alguma demora, ele dizia que não havia nenhum problema nisso, apenas abria suavemente os braços para distanciar as mãos e exclamava: “não tem bactéria”.

E eu gostava imensamente dessa atitude acolhedora, educadíssima, pertinente num ambiente escolar. No começo eu ria disso, achava interessante a expressão, simpática mesmo.

Eu guardei essa imagem daquele jovem bibliotecário que conheci em 1981. No ano dos meus grandes sonhos e vontade sem fim. Num tempo em que, numa recuperação, não sei porque cargas d’água a diretora (aquela grossíssima) me negou o espaço de uma sala de aula e eu chamei a aluna, uma japonesinha miúda, e expliquei o conteúdo prá ela dentro do fusca vermelho (o fusca do meu pai), desenhando alguns mapas imaginários no vidro da frente.

De lá prá cá continuei sonhando , teimando, dormindo pouco, com muitas dores nas pernas e na garganta, comendo a comida de ontem porque na dava tempo para fazer uma nova ... e sempre à procura. Amando muitíssimo o meu trabalho, sofrendo demais quando de algum desentendimento. Lendo, buscando, reverenciando o mundo e admirando todas as criações do universo. Nos momentos mais delicados, intensos nas perdas, nas horas de frustração e desconforto, de medo e de desalento, invariavelmente eu penso:”não tem bactéria”... e sigo a vida na maior naturalidade.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 03/11/2011
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