Seu Basílio, o engraxate

Concorrência desleal!!!

Espere um pouco, eu te conto...

Ainda menino, me esforçava para ganhar uns trocos. E uma das atividades lícitas era colocar uma caixa de engraxate nas costas e perambular pelas ruas e tentar a sorte.

Eu realmente não levava muito jeito pra coisa.

A graxa que eu usava era a mais barata, uma tal de Pomada Saci, que com o calor que fazia naquela cidadezinha do interior de São Paulo, derretia completamente.

Teve até um cidadão, do qual nunca me esquecerei, que aceitou que lhe engraxasse os sapatos. Porém, quando viu a graxa marrom, toda derretida, rapidamente tirou os pés do apoio da caixa. Maldosamente, e até hoje me ecoa na alma, quando me disse: "ei moleque, o que é isso!!! Quer passar merda nos meus sapatos?”

Como diria o Ari Toledo na sua composição Pau de Arara : "se não fosse o amor que eu tinha pela minha caixa (violinha), teria arrebentado ela na cabeça daquele pai d'égua".

Mas, partia para uma outra tentativa, e até encontrava boa alma que via naquele meu esforço algo de bom e nobre, e me ajudavam.

Mas, eis que aparece um senhor de nome Basílio, muito conhecido lá por aquelas bandas.

Muito pobre e grande prole.

Vivia de favor lá na casinha que fora antigo vestiário da Associação Atlética Bernardinense (AAB). Ferrazinho, então Presidente da entidade permitia. Já devia ter ele algo mais que 60 anos.

Seus filhos, Roberto e Walter, que tinham o apelido de Poca-Ropa, e jogavam muita bola, até mesmo pela convivência no estádio. Eram convidados de honra de qualquer pelada. Tinha ainda mais a Sônia sua irmã e mais uma pequena, que me lembro o nome, dos filhos que conheci.

Bem, concorrência desleal porque eis que me aparece o tal Sr. Basílio na praça com uma enorme caixa de engraxate, e roubou todos os fregueses da molecada.

Claro, o homem necessitava mais que nós, e, os adultos se condoíam mais desse cidadão, com muitos filhos e situação de extrema necessidade, e claro, o ajudavam.

E os demais engraxates permaneciam todos à volta de Seu Basílio, vendo-o trabalhar.

Enquanto o fazia, contava suas histórias, de que, quando jovem, teria sido goleiro do famoso Jabuca (Jabaquara de Santos), nos bons tempos da década de 50.

Claro está que hoje penso, a deslealdade fora pela forma apelativa que um homem, chefe de família, com aquela idade, mas de um significado que hoje consigo avaliar.

O que não faríamos numa mesma situação, para ganhar o pão de cada dia honestamente?

Alguns dias depois, Seu Basílio partiu deste mundo, e nós meninos engraxates, ficamos muito arrependidos da bronca que sentíamos da concorrência que tivemos.

Deus o tenha Seu Basílio!

E, comparando com os tempos de hoje, que guardadas as devidas proporções, ainda geram os necessitados, que vergados pela idade, buscam seu sustento de forma mais humildes e humilhados pela nossa sociedade.

E, ainda assim, incapacitados de reação, vêem outros ditos nobres cidadãos roubarem descaradamente nos muitos espaços de nossa administração pública. Esses sim, lacaios, que são eleitos pelos mesmos que lhes roubam as oportunidades e a dignidade, ajudando a gerar a imensa população carente deste país, que ainda fica a espera das Bolsas Escolas e Bolsas Famílias, que antes de saciar a fome, ceifam-lhes o que poderia ser mais digno do cidadão, que é o seu trabalho honesto. E postergam simplesmente a miséria, ao invés de planos sustentáveis de resgatar o espírito de luta que sempre teve o sofrido povo brasileiro.

Hoje penso isso sim é concorrência desleal, na qual quanto mais eu trabalho mais eu vejo crescer a miséria a minha volta!

Descanse em paz seu Basílio, já naquela época, certamente entregou-se aos céus, vitimado pela mesmice que ainda hoje assola o meu país.

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 30/12/2006
Reeditado em 01/11/2011
Código do texto: T331799
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