As artérias do Pato

Vejo o Pato chegando com tremenda dificuldade. Arrastando os pés como um ancião de muitos dias, como diria um escritor bíblico. De fato o Pato parece-me muito acabado. Fazia tempo que não o via. Está com os cabelos brancos e em desalinho, a barba crescida e também totalmente branca. Vem claudicando em busca de um lugar para sentar-se. Levanto-me por impulso. No consultório lotado não há mais acentos par quem aguarda, e como não sou paciente*, apenas acompanho minha filha sinto-me na obrigação de desocupar a cadeira. Ele agradece e deixa o velho corpo derrear-se emitindo um profundo suspiro de alívio. Fita-me com olhos de gratidão sem esboçar qualquer gesto ou palavra. Penso que não me reconheceu.

Passo a fazer uns cálculos: eu tinha quinze anos e ele estava com vinte quatro, o que significa que está agora com cinquenta e quatro. Parece ter setenta. Lá se foram trinta anos...

Conheci o Pato quando eu tinha quinze anos. Amelinha estava nas paradas com "foi Deus quem fez você". Eu era um adolescente alto magro e feio, com o rosto estrelado de espinhas e os cabelos passando por um estado de transição de liso para crespo que nada no mundo de então conseguiu evitar. Era mesmo uma coisa. Rebelde, complexado. Um Che Guevara covarde que fizera de "Pra não dizer que não falei das flores" o seu hino, até porque eu me acompanhava com o violão a dois acordes. O Pato e eu trabalhavamos na fábrica (naquele tempo as leis brasileiras ainda entendiam que é melhor o adolescente trabalhar do que se formar para bandido, vadiando enquanto os pais estão no trabalho). Pato, com vinte e quatro anos, boa aparência, com um bom emprego (naquele tempo haviam bons empregos em fábricas de calçados) e fumando por dia uma maço de cigarros Hollyood, o cigarro do sucesso. Ele vivia uma situação inusitada. Durante quinze dias passava amancebado com uma prostituta cujo nome de guerra era Morgana. que não obstante o tendo como seu amásio, continuava exercendo sua profissão, colocando seu estabelecimento comercial ao dispor de qualquer um que pudesse pagar. Nos outros quinze dias seguintes tornava-se evangélico, pagava o dízimo, lia a Bíblia e pregava a palavra enquanto pregava a sola do sapato. Morgana era uma mulher admirável. Uma puta muito direita, alta magra e bem cuidada, muito profissional. Eu a vi algumas vezes passeando pela cidade com seu porte altaneiro em lindos vestidos e saltos muito finos que realçavam ainda mais sua elegância de mulher dama. Durante muito tempo estive apaixonado por ela. Uma paixão silenciosa, doentia . Nos dias de paz no convívio com a profissional do sexo ele confidenciava-me detalhes picantes de seu relacionamento com ela que me elouqueciam. nos dias em que se tornava o crente radical ele me convencia que eu estava condenado ao fogo eterno. "O machado está posto a pé das árvores e toda aquela que não der bons frutos será cortada e queimada... " Depois ele voltava a coabitar com ela... Depois voltava ao seio de sua igreja...

_ Ronivaldo Clemente dos Santos. Eu digo.

Este é o seu verdadeiro nome e eu sempre o chamara assim. Ele me reconhece imediatamente.

_ Como vai?

_ Vou bem. E você?

Diz-me que se recupera de uma cirurgia que fizera nas pernas. Problema de circulação. pergunto pelo cigarro ele dá a mesma resposta:está tentando parar. Digo-lhe que os casos de má circulação quase sempre é consequencia do tabagismo. Trabalhei por dez anos num asilo e enterrei muita perna de fumante. Foi o que o doutor me disse. Responde com uma vontade frouxa. Também me disse que o mau já está feito. Acho que quiz dizer que não preciso mais parar. Tem um cigarro aí?

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 06/11/2011
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