E agora?

E AGORA?

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 02.11.11)

Algumas pessoas às vezes mergulham tão profundamente num projeto, numa missão, num trabalho que, ao terminarem a tarefa, sobem à tona deslumbradas com o mundo em volta e como que ofuscadas pela luz intensa que banha os horizontes. Então elas pensam: E agora? O que fazer agora que o doce desafio foi vencido? Qual a próxima atividade a que vou me entregar de corpo, alma e espírito? Devo mesmo fazê-lo e sofrer as penas da criação, o jugo dos prazos, a satisfação da realização? Ou quem sabe não será melhor assumir a confortável passividade de só cumprir o que me ordenarem fazer, de me limitar aos deveres instituídos, de me poupar para não me cansar nem desgastar demais? Já não diziam que ler demais torna os olhos doentes e pensar demais deixa o cérebro variado?

Algumas pessoas às vezes agem assim, mas seguramente não é sempre nem constantemente que o fazem. Também parece que só algumas pessoas mostram esse comportamento, mas é de duvidar a veracidade desta especulação: talvez sejam muitas as pessoas que se dediquem com absolutas intensidade e entrega a um projeto, remunerado ou não - e geralmente, nesses casos, com escasso (ou nenhum) retorno financeiro, para desespero de quem esperava a justa retribuição pelo esforço despendido, pelo talento empregado, pelo desprendimento das coisas objetivas da vida cotidiana. Mas talvez sejam todas as pessoas que ajam assim, quem sou eu para saber de todo mundo, para falar em nome de sete bilhões?

E agora? Se a pergunta fosse feita ao Caio, hoje beirando por baixo os 10 anos de idade, ele responderia, desde antes dos cinco, com algo parecido com aquela musiquinha do jingle bell, jingle bell, acabou o papel: faz na mão (com K e H) e joga fora. Ensinamentos do pai dele. Para a vida do rapazinho. Mas não é o caso, este é um texto sério, uma respeitosa crônica dedicada à leitura e ao gozo da ilustre família catarinense.

Algumas pessoas, então (e suponhamos que sejam mesmo algumas pessoas apenas, para efeitos de raciocínio e para podermos dar seguimento - e não segmento - ao assunto), envolvem-se de tal maneira naquilo que as absorve e entusiasma que, concluída depois de dias, semanas e até meses a doce obrigação que se autoimpuseram, emergem e sentem-se vazias, ainda que plenas de satisfação e realização devido à execução caprichada, no máximo grau de qualidade que suas limitações permitem, da meta traçada: vazias no sentido de não saberem ou não lembrarem o que delas exige agora o mundo objetivo, vazias porque ansiosas já por começarem a gestar um novo projeto para um novo mergulho (regenerador).

Em tempo: autoimpor é verbo criado neste momento, os melhores dicionários do idioma pátrio ainda não registram sua existência. Devem fazê-lo em suas próximas edições.

Exemplificando: a composição de uma sinfonia para piano e orquestra ou de um caudaloso romance (estamos falando aqui de Música e de Literatura) não se realiza nos intervalos, nos momentos que o mundo nos concede - até mesmo porque o mundo não concede tempo algum para ninguém, ele é exigente e suga o que puder, o que lhe deixarmos ao alcance das mãos. O músico e o romancista têm um universo inteiro para administrar e precisam do tempo de que puderem dispor para dar forma e consistência às suas criações. Para eles, a solidão, o recolhimento, o claustro, a prisão são seus ambientes dos sonhos - o que equivale a dizer que precisam mesmo alienar-se das miuçalhas do cotidiano. Ou abdicar das suas mais caras aspirações.

E agora?

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.

Em 26.09.2011 foi eleito em primeiro turno, com 24 votos de 29 possíveis, para a Cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras.