Morango com creme de leite

Comprar morango nas feiras de São Paulo, para nós, era coisa mais ou menos rara. Tinha época certa. Nos anos 70, naquelas feiras imensas do Cambuci, lá ia minha mãe com seu inevitável carrinho. Eu achava aquilo tudo muito cansativo, até cruel. Arrastar um carrinho com comida pela rua; era pesado, desajeitado... Era então feita a compra para a semana. Vinha a dúzia de bananas, outra dúzia de laranja pêra, a alface, a escarola, o chuchu...

Vez ou outra, o meu pai completava a compra na feira de domingo, na rua Mesquita , mas com apenas duas sacolas . O cheiro daquelas feiras até hoje me balança a alma numa suavidade , de generosas lembranças com histórias inenarráveis.

Tinha o caso do pastel, da laranja Bahia, tinha a beleza da japonesa vendendo seus sapatos , cada pé sobre a respectiva caixa. Tinha a barraca de frios. O nordestino magro vendendo o alho, o colorau e a pimenta do reino moída. O coco ralado também. E os doces, as balas de goma, a bala de coco muito açucarada e macia, o saco grande com pururuca e biscoitos sem fim.

Mas o morango era de vez em quando. Até porque tinha que se comprar a lata de creme de leite, então a coisa ficava meio especial, mas esperada. Era coisa para acompanhar aquele macarrão com frango das quintas-feiras. Então, era uma festa. O creme de leite ficava algumas horas no congelador. Depois, era só abrir a lata, retirar o soro, duas colheres de açúcar, misturar bem... e o paraíso desfilava sorridente, formoso e branco a cobrir aquelas maravilhas vermelhas e geladas e azedinhas.

A caixa era de madeira, mas uma madeira extremamente fina e clara, maior do que a de hoje. E naquele canto da mesa da cozinha, a minha avó, já com a sua pouca visão, quietinha, ia limpando cada uma daquelas frutas, arrancando-lhe os cabinhos, retirando alguma parte mais escura ou machucada. Depois, era a hora da lavação com vinagre.

Quanta poesia existia no gesto silencioso e cândido da minha avó! Ela sempre dizia que era “para eles mesmo” , quer dizer , para os netos , e fazia a sua atividade calmamente. Sempre participativa, mas com tantas limitações...

Nós nunca deixamos a vó desatualizada. Quando não conseguia mais visualizar as letras, nós líamos para ela ou contávamos as notícias fresquinhas. E ela ia pensando, se indignando com as coisas do tempo, mas sem aborrecer o ouvinte com reclamações inúteis, mas apenas tentando compreender os caminhos do mundo. E quando se punha a pensar, invariavelmente colocava o dedo “fura-bolo” direito suavemente sobre a ponta do dente canino... e filosofava no seu silêncio. Quando retirava o dedinho do dente, é porque ela já havia encontrado uma resposta ou compreendido que nada mudaria de imediato nos tempos de ditadura. Era tudo uma pouca-vergonha só.

E naquele canto da mesa, ela ia limpando os morangos, um a um, poeticamente, tecendo a mistura do doce com o azedinho, mostrando que a vida tem tudo isso junto: tempos difíceis, superação, trabalho duro, a busca pela comida, a luta incessante pela dignidade, a valorização da família, da boa mesa, da conversa informal e muitas, muitas histórias para se viver intensa, amorosamente.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 09/11/2011
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