QUANDO OS SINOS DOBRAM
(Novembro/2011) 

Garoa fina borrifando a manhã de segunda feira.No burburinho das ruas,o ir e vir de gente me parece mais intenso.Por conta da frente fria que estabelecera-se,agasalhos e guarda chuvas saídos dos armários sobem e descem uma das ruas centrais .
[Meados de novembro com ares de julho]
Na confeitaria do Alcides,sento-me numa banqueta na lateral direita do balcão.Duas portas descortinam –me uma das esquinas mais famosas da cidade.
A vendedora serve-me um pastel de frango com catupiri.Espalha ao redor do prato alguns saches com molhos e maionese.O vapor desprende-se do pastel enchendo o ar de um cheiro delicioso,irresistível.Ela volta-se para o outro lado do balcão e com uma das mãos sob o queixo vê escapar pelas ruas seus mais secretos pensamentos.
Igualando-me à pensativa, liberto meus devaneios para que batam asas.A revoada ruma calçada à fora, sob a garoa que não cessa.
Vivia,naquele momento, um daqueles dias em que paz e tranqüilidade usam de cumplicidade para nos fazer felizes.Nada de especial! Estava “de bem” comigo mesmo,apenas.
Apesar do movimento intenso,pairava no ar uma rara placidez.Um certo “quê” de aconchego acarinhando a alma,de leve,de miudinho...
De repente sons quase divinos embalam a cidade,despertando-me das divagações.
Dobram-se os sinos da matriz de Nossa Senhora da Luz.
Um ritual assinalando,em  duas torres, o encontro dos ponteiros naquele instante em que o dia reparte-se em dois. Na hora em que mesas marcam o reencontro de famílias,projetos tomam rumos para o período da tarde e algumas reflexões cobram aquilo que não se fez ou reconfortam pela satisfação daquilo que fora feito.
E aquelas badaladas vão pastoreando rebanhos pelas ruas.Instalam-se com docilidade nos mais recônditos compartimentos de cada alma na  cidade  arrebanhada.Há que se ter muita frieza de espírito para não permitir-se envolver no clima do instante.Emocionado,me dou conta de quanto tempo não parava para ouvi-las.Não da mesma forma como a  que agora faço-me  receptivo. Talvez não estivesse preparado em outras ocasiões para deixar-me enternecer , pois até mesmo os sinos requerem espaços apropriados para soar encantos em nosso íntimo.
A manhã de garoa fria fizera-me hospedeiro das badaladas do meio dia.Algo aparentemente corriqueiro,um conhecido acorde diário,mas carregado agora de tamanho encantamento,nostalgia,lirismo...Um convite à reflexão sobre a  arte  de  bem  viver.Um  percorrer sereno  pelos nossos sagrados  templos  interiores  e a  graça de desfrutar de uma cidade pacata,humana,ordeira,onde as esquinas escrevem histórias solidárias.Onde ainda persiste a partilha de sorrisos,amizades e afetos .Onde o olhar materno de Maria ,no topo da colina, divisa os passos de seus filhos numa ternura perene,até mesmo numa manhã fria e  garoenta...Enquanto os sinos dobram.
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Quarta feira.
São quase 12 horas de uma manhã lavada de sol.Curioso posto-me nas escadarias da matriz.
Decidi saber um pouco mais sobre o "marco das doze horas".
Apressado,um jovem rapaz aproxima-se .Rubens é o seu nome.Abnegado ,o tocador de sinos, chega para sacudir a cidade - como faz todos os dias – no momento em que os ponteiros apontam para o infinito.
Gentilmente,permite-me a entrada no templo e, enquanto dobravam-se os sinos,diante de altares e vitrais coloridos mergulhei  na infinitude da paz que aquele momento divino me proporcionou.



comentários:
18/11/2011 05:03 - Chico Chicão
Caro Joel.Quando adentramos uma igreja,parece-me que voltamos ao útero materno.A paz,o aconchego,a seguranca.Voltamos a nossa essência de seres espirituais que somos,em experiências na carne. O espírito aprende através do corpo.A *solidão* de uma igreja nos reporta a isso.Que lindo texto.Forte emocão me invadiu.Obrigado Joel.Fique na paz!