Tango - Parte XI - Rondó

Por una cabeza......

E aquela música dançada pela última vez por Alice, perseguia Heitor....

Heitor tinha mais um cadáver atrás de si para arrastar.

-Foi você........eu sei que foi.

Falava Heitor para aquele home à sua frente, o violoncelista.

Nicolai se assustou:

-Eu o que?

-Foi você que misturou aquela coisa na cocaína de Alice. Você me arrastou para aquele lugar para ver ela morrer. Sei que você a odiava......Por que fez isso?????

-Está louco? Como me acusa de uma coisa dessas? Foi só uma coincidência...

-Coincidência porcaria nenhuma. Eu estava bêbado, mas me lembro do que você disse. Primeiro, que ela estava vulnerável...vulnerável a que? E depois não me deixou ir embora quando eu quis....lógico que para ver ela morta. Você é um assassino.....

Essas palavras também pesavam sobre a cabeça de Heitor....até que ponto poderia acusar Nicolai?

E Nicolai respondeu:

-Você é realmente doido. Eu nem sei por que disse essas coisas. Eu estava muito bêbado...Mas pode ter certeza, que eu apenas queria que você se sentisse melhor...mais vivo. Você morreu com sua família, e eu queria apenas te dar uma noite feliz...desculpe se tudo deu errado e aquela vadia morreu.....Mas não me acuse...eu sou o único amigo que você tem...e está quase perdendo.

Heitor teve noção do quanto desgraçadamente só ele era, ao ponto de ter como amigo um imbecil que mais parecia chefe de excursão. Mas se não foi Nicolai, quem teria matado Alice...Alguém colocou alguma coisa em sua cocaína....mas quem?

Dias depois pelo jornal, Heitor descobriu que realmente a cocaína de Alice recebera um aditivo extremamente venenoso....Mas a polícia não sabia quem teria feito ainda...

E como de costume, o escândalo se sobrepôs á importância dos fatos. Jornais de todo o mundo deram conta da famosa pianista que morreu em um salão de danças, após cheirar cocaína adulterada. Descobriu-se também que ela era viciada em outras drogas, que já havia tentado o suicídio algumas vezes...e isso explicava as marcas nos pulsos da pianista......

Falou-se até mesmo dos abortos...Alice virou o melhor demônio a ser achincalhado por todos.....Sua música, foi esquecida. Na verdade, é como se ela nunca houvesse existido.

No fim, não deu em nada toda essa celeuma...Alice e sua história sombria foram para o lixo...aquele onde sua alma habitava...e todos, menos Heitor, nunca mais se deram conta de que ela havia passado por esse mundo.

E os dias, as horas, os minutos, ficavam cada vez mais insuportáveis. Heitor sentia realmente o que era carregar tantos pesos nas costas. Não fosse a insistente companhia de Nicolai, mesmo com as acusações e desconfianças de Heitor, tudo seria muito pior. Muito mais negro.

E por insistência do violoncelista, Heitor deixou sua casa, que se tornou uma tumba, para passar uns tempos no apartamento de Nicolai....

E tudo estava definitivamente perdido. A ironia do tempo era tão desprovida de originalidade, que Heitor foi viver justamente com o irmão daquele a quem assassinara.....Aquele filho de pecado que manchou seu corpo e sua alma. Aquela anomalia da natureza. Mas não importava. Bem ou mal, Nicolai ainda era o único ser vivente que dava um voto de confiança àquele meio cadáver.

Iria viver sim, como o irmão da aberração, pois sentia tanta pena de si mesmo, que queria ver naquele rosto feliz, o riso de Deus se escarnecendo de sua desgraça.

Heitor não tocava mais seu violino. Por sugestão de Nicolai, iria se dedicar apenas às formações de câmara, com esporádicas apresentações. Tudo para, nas palavras de Nicolai, ter tempo para cicatrizar as feridas...

E o tempo se não cicatrizava, fazia pelo menos as culpas parecerem mais distantes. Tanto que em alguns momentos, Heitor conseguia sorrir. Eram longas conversas noturnas com Nicolai, onde Heitor mais ouvia do que falava. Falava-se sobre tudo.

Parecia mesmo que era possível haver um futuro além daquelas cortinas escuras que escondiam a alma de Heitor.

Até o dia em que Heitor ficou só.

Parado em frente à imagem de barro, ele se virou para trás, quando mais uma vez ouviu o tango.

Alice entrou na catedral. Os anjos do altar, apesar de impassíveis, sabiam de todo o mal que seria feito, e queriam cobrir seus olhos para não ver o fim da criação.

Ela entrou com seus saltos altíssimos, e com os olhos fixos em Heitor que não acreditava naquela visão.

Ela foi até o centro, e retirou alguma coisa de sua bolsa, que brilhava por causa da pouca luz que penetrava pelos vitrais. Era uma navalha.

-Você é um homem fraco. Você nunca me mereceu.

E cortou os dois pulsos.

Antes que Heitor pudesse fazer alguma coisa, ela se esvaiu em sangue até morrer. Desesperado, ele gritava mas ninguém, nem os anjos pousados sobre o altar faziam alguma coisa. Era tudo terrível...o cheiro de sangue, misturado á fumaça das velas e os eternos olhos fechados da imagem de barro do centro do altar.

Heitor pôde sentir ao longe, o riso de Tomás....

Ele dizia:

-Esse seu Deus não pode mudar o que você fez.......

Quando percebeu, Heitor era sacudido por Nicolai:

-Acorde homem...

Foi um pesadelo.

-Tive um sonho horrível...

-Eu percebi pelos seus gritos....Afinal, sobre o que era?

Heitor não poderia jamais revelar a natureza de seus sonhos, ou se trairia justamente para o irmão do homem que matou.

-Não sei ao certo...eram várias imagens estranhas...nada de mais....

E daquele dia em diante, o tango passou a perseguir Heitor. Tanto que não dormia à noite, sentindo aquela música se insinuar pelo apartamento. Sentia um cansaço terrível....

Ficou absolutamente impossível tocar seu violino...até que finalmente foi dispensado do quarteto do qual fazia parte. Estava realmente arruinado. Impossível se concentrar nos ensaios, um cansaço imenso e o corpo finalmente sucumbiu a tanto desespero.....

Acordou um dia no hospital, com Nicolai ao seu lado, com um rosto inusitadamente sério.....

-Meu querido...precisamos conversar.....

-O que aconteceu comigo..o que eu estou fazendo aqui nesse lugar??? Isso é um hospital????

-Sim...você teve uma crise nervosa, desmaiou...e eu o trouxe para cá...Mas está tudo bem agora..em breve poderemos sair daqui.

Após centenas de recomendações do médico, Heitor foi apara o apartamento de Nicolai...passava a maior parte do tempo na cama. E graças á gentileza daquele que tanto odiou, e que naquele momento era seu único e melhor amigo, Heitor era alimentado, medicado e cuidado.

Estava desempregado, sem perspectiva de futuro...e ainda por cima, as culpas começaram a pesar novamente no coração de Heitor. Não havia uma noite que não fosse assombrado pela presença de Alice e sua música. E também pelo hálito terrível de Tomás....e por causa das noites de insônia, Heitor passou a ver, à luz do dia, as duas figuras circularem pelo quarto, como se fossem vivas....

O terror de Heitor era tão grande, que passou a pedir que Nicolai não saísse mais do quarto.

Nicolai apenas observava, como quem não entende o que poderia aquele homem ter feito para ter tantos temores. E ele apenas segurava a mão de Heitor. Às vezes, sentia vontade de chorar...mas se continha....

-Nunca pensei que diria isso a alguém, Nicolai, mas acho que você entenderá: eu te amo. Por tudo o que fez por mim. E eu te odiava....

-Eu sei..eu também te amo. Como meu irmão. Como aquele meu irmão que morreu estrangulado, do qual lhe falei....Não se preocupe se me odiou. Importa o futuro apenas...

-Quero te agradecer por tudo que tem feito...e eu sei que não mereço...eu o acusei, e nunca fui muito com sua cara...mas você é o melhor amigo que alguém pode ter.

Naquele momento, Nicolai chorou.

-Você vai ficar bem. Descanse.....

Heitor, pela primeira vez na vida, foi sincero. Declarou amor de verdade, á alguém que amava de verdade. Talvêz até dormisse naquela noite....

E quando fechou os olhos, ouviu novamente o tango.

Quando abriu os olhos, pode ver duas sombras se moverem embaixo da porta. Era a voz de Alice, falando a Nicolai:

-O que vamos fazer agora????