Amigo

AMIGO

Acordo pela manhã e lá está ele, aguardando-me sem reclamar. Foi dormir comigo e já está desperto há sei lá quanto tempo, aliás, acho que não dormiu. Sinto seu cheiro, vejo sua silhueta, sua cor e levanto-me sem ao menos lhe dar bom dia. Tomo meu café, saio para levar minha neta na escola e ao voltar vou ter com ele. Ele não reclama da minha falta de educação e convida-me a viajar por lugares em que jamais estive, acompanhado de mocinhos e bandidos, moças belas e feias, donzelas e prostitutas e ainda a comer desde caviar com champanhe até prato feito. Vez por outra interrompo a viagem intempestivamente mas ele não reclama, permanece aguardando-me pacientemente. Abandono-o a própria sorte por horas, as vezes dias, mas ele lá permanece. Volto a vê-lo, sem aviso prévio, e continuamos a viagem de sonhos e pesadelos, de temores e valentias, de amores e sexo, de roubos e prisões, de ódios e perdões até que cansado deixo-o novamente, vez por outra reclamando de suas andanças e falta de planejamento, afinal já não estou tão novo para viver tantas emoções, com tamanha intensidade. O dia foi longo, preciso descansar, mas antes volto a vê-lo e ele me convida para mais uma passeadinha, sem tanto esforço, para não me cansar ainda mais. Topo, e lá vamos nós através dos tempos caracterizados de artistas, empresários, gente importante e gente comum até que o sono me derrota e largo-o só, em uma das esquinas mais perigosas do mundo. Que sacanagem!! Por muito menos, eu já teria perdido as estribeiras e mandado-o às favas, mas surpreendentemente quando acordo, lá está ele resignado e aguardando para continuarmos por novas e prazerosas aventuras.

Escrevo isso pois parece que meu amigo começa a definhar em lenta e dolorosa agonia. Não sei se sobreviverá e não sei se conseguirei, confesso, viver sem ele. Está surgindo um amigo novo, cheio de novidades, com uma roupagem moderna, com toques suaves, limpo, sustentável, extremamente inteligente, comunicativo e brilhante (talvez até demais para meu gosto), mas em contrapartida, sem cheiro, sem sabor, andrógino e petulante, dizem que as vezes abandona os amigos sem avisar, até parece que irá fazer comigo o que muitas vezes fiz com meu amigo que quer partir. Preciso adaptar-me, afinal a vida continua, mudanças e novidades são parte do contexto. Só sei que será difícil deixar de tocar, sentir o cheiro e ter a companhia de meu velho e maior amigo, meu livro. Que Deus o tenha !!

Arnaldo Ferreira
Enviado por Arnaldo Ferreira em 22/11/2011
Reeditado em 20/10/2016
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