Tango - Epílogo

Demorou para amanhecer.

E o mundo permanecia exatamente o mesmo.

Nas sombras da inconsciência, penetrou a parca luz da manhã. A luz que se quebrava em outras cores por causa da vidraça. A luz que fazia o tango ouvido à distância parecer mais fantasmagórico...mais desesperado. Um tango feito de penumbra. Um tango feito para ser o que todos os homens têm no peito: a paixão.

E como Heitor se fracionou em um tango desesperado....fingindo ao mundo o silêncio, oculto em passadas largas....Um tango feito sem par, um tango dançado com a morte.

Por una cabeza.....O olhar de Heitor quase congelado, o fazia o ser mais apaixonante do salão escuro, onde subia a fumaça e onde Alice se insinuava como uma serpente . E Tomás com tudo aquilo que poderia ter sido...mas nunca foi.

Enquanto a dança chegava ao fim, os olhos de Heitor se abriam para o mundo, para encarar o rosto que a verdade insistia em mostrar: a face sombria de Nicolai.

Nenhuma palavra era necessária. Tudo estava definitivamente elucidado.

Sentindo o gosto de sangue em sua boca, só pôde fazer uma pergunta, sem querer de fato saber a resporta:

-O que aconteceu?

Nicolai observava aquele homem deitado sobre a cama, e ainda relutava em terminar o que havia se proposto, tempos atrás.

-Acho que você sabe o que aconteceu, não é mesmo?

Otto, o fagotista, apenas observava da penumbra, como quem já sabe o fim de todas as coisas. Como um daqueles anjos que não vêem surpresa alguma no destino e apenas aguardam a hora em que o Criador irá mandá-lo à caça de alguma alma em especial.

Nicolai se volta para seu companheiro e diz:

-Pode sair do quarto agora. Preciso conversar com esse verme.

Otto obedeceu, e se postou do lado de fora da porta.

-Bem, eu sei de tudo.

-De tudo o que?

-Chega de mentiras, Heitor. Eu só estou aqui por uma razão....Eu sei quem matou meu irmão. Foi você.

Heitor sentia seu estômago congelar. Mas como aquele lunático teria descoberto a sua ligação com Tomás?

-Bem, eu preciso que sofra. Quero que sofra bastante. E só por isso, vou te contar tudo.

Heitor sentia suas mãos suarem.

-A polícia desse país é notória por sua incompetência. Então, resolvi eu mesmo descobrir o que aconteceu. Não foi difícil seguir os passos do meu irmão até o Hotel onde vocês se hospedaram. E é incrível como algúm dinheiro faz com que as pessoas soltem a língua. O recepcionista me deu todo o serviço. Ele falou de um casal de enrustidos que foi para o quarto numa noite....daí, presumi muita coisa. Consegui seu nome, e não foi difícil saber que por uma dessas coincidências felizes, você também era um músico.

-Mas isso não prova nada....

-Você mente compulsivamente, não é? Mas de fato, isso não prova nada. Por isso mesmo, fui procurar mais informações. Imagine que sorte a minha, encontrar a vagabunda da Mariane num momento tão frágil...não foi difícil que eu me tornasse um amigo e amante dela. E como ela era gostosa....ela sempre falava que eu é que era homem....e que havia se casado com uma bicha.....

Nicolai ria. Heitor sentia uma dor no peito tão grande, que queria esfolar aquele maldito chefe de excursão. Mas queria saber o que mais havia acontecido. E ele olhava pela janela, para a tempestade que novamente se aproximava e apagava qualquer presença da luz da manhã....

-Pois bem – ele continuou- a vadia da sua mulher me contou tudo o que acontecia com você. Impressionante, cara...aquela mulher era muito carente. Mas ela foi se apaixonando por mim. Tanto que ela até me contava das marcas que Alice deixou em seu corpo....mas ela já nem ligava. Não é incrível? Então, passei a te seguir. Meu grande amigo Otto fez essa gentileza. Até que um dia se deparou com você e Alice em um café...E como visto, pelo que ele me disse, você gostou dele não é.....me falou da maneira como você o olhou...que nojento.

Heitor recordava de todas aquelas cenas. Cada vez se sentia pior, mais enganado. Como pôde deixar aquele parasita entrar em sua vida?

-Depois, foi só virar seu melhor amigo. Isso não é difícil quando uma criatura é tão sozinha quanto você. Você é patético mesmo....bastou eu dizer meia dúzia de coisas que você queria ouvir e pronto...eu era seu melhor amigo de infância. Que ridículo....e foi fácil saber onde mais doíam as coisas em você...Por isso, tive de contratar uma ajuda especializada para começar a acabar com você... Paguei caro, ouviu.....mas o serviço foi limpo e eficiente....Impressionante como um matador de aluguel é profissional. Ele matou sua esposa e seu filho com uma pontaria invejável. Confesso que o tiro não era pra ser na cabeça de seu filho, pois eu queria você vendo o rosto dele morto...mas tudo bem. O caixão lacrado foi ainda mais interessante...me diga: como foi se despedir de seu filho sem poder ver a face dele, e sabendo que havia um buraco no meio da cara dele?

O que era dor em Heitor, virou silêncio. Nada poderia ser maior que aquele remorso. Ele era o culpado indireto pela morte de sua família...e ele culpou Alice por isso....

-Depois de acabar com sua família de merda, eu precisava causar um pouco mais de dor...Eu vi que Alice o estava deixando meio apaixonado..que bobo isso, não é? Logo você, uma bicha, se apaixonar por aquela mulher...uma vadia. Bem, eu queria que você a visse morrer naquele dia. Por isso, Otto misturou um posinho mágico na “farinha” dela, enquanto ela dançava....e pronto. A cadela morreu na primeira cheirada.....E você, novamente sozinho.

Heitor estava inerte.

-Aí, veio o final: comecei a dopar você, sem que percebesse. O Otto é ótimo em descobrir certos remedinhos especiais. Só que um dia exagerei e você desmaiou. Tive que levar você para o hospital...só me faltava ter aquele trabalho todo pra você morrer logo de cara. Então, depois da alta, passei a ser mais cuidadoso. E o melhor de tudo, é que esses remedinhos faziam você ter pesadelos, alucinações....Foi bom ver você ser demitido e ficar totalmente dependente de mim. Sinceramente...hoje sinto até um pouco de pena de você. É isso...agora você é nada.

O mundo de Heitor acabava ali. Ele estava morto. Morto de dor, de remorso e de ódio. Não conseguia sequer chorar. Ou se mover. E Nicolai se levantou, indo em direção à porta.

-Pense no que vai fazer com tudo isso o que sabe agora. Não quero te ver preso, é claro. Mas se quizer isso, posso arranjar. E nem adianta me acusar dos assassinatos. Diferente de você, sei disfarçar minhas pegadas.

E saiu do quarto, deixando Heitor parado, de pé. Heitor era apenas uma coisa. Era uma pedra. Era o que de pior poderia existir no mundo.

Pensou em seu filho, pensou em Alice, pensou em Tomás...e viu que tudo estava realmente acabado. Sobrou apenas ele, o homem, o cão, a fera. Aquele a quem Deus castigava por suas maldades.

Em sua cabeça, o som do tango reverberava terrivelmente.....

Olhou para o armário à sua frente. Viu seu terno escuro, viu seu perfume, e não mais pensava. Havia se libertado dessa condição de ser pensante. Ele era apenas tristeza. E só.

Enquanto as sombras se instalavam no quarto, Heitor ficou nu. Logo depois, vestiu seu terno, vaporizou o perfume, e olhou para o violino sobre a mesa. Não quis mais tocá-lo...

Seu penúltimo pensamento, foi para seu filho. A única coisa que amou. E que matou. E cada vez mais, sentia o inferno.

E seu último pensamento, foi para a lâmina da navalha de barbear. Essa ferramenta tão antiga e tão útil....

Pegou-a com a mão trêmula e à medida que a chuva despencava lá fora, e o tango se tornava mais distante, ele cortava sua garganta, com os esguichos de sangue manchando o espelho à sua frente, que não refletia mais nada.

Caiu morto, logo no momento em que Otto abria a porta. E este que apenas observou Heitor, não sentiu nem dor, nem ódio, nem pena. Internamente ele sabia que tudo acaba mesmo. De um jeito ou de outro.

E a tempestade que lavava a terra, levaria embora até mesmo a lembrança, daquele homem que não foi ninguém.

Os olhos de Heitor morto, refletiam apenas perguntas. As respostas, ninguém saberia onde estariam.

Fim.....