Visão Putrefada

A chuva cai fina no telhado que mistura amianto com caixas de papelão e um plástico preto de lixo contaminado. A pequena janela escavada na parede de adobe, abre uma visão nauseante de barracos e esgotos escorrendo em meio a crianças semi-nuas de abdomens expandidos. Meninas que há poucos dias sangrou pela primeira vez se maquiam feito manequins de perfumarias e vão experimentar os acres sabores da vida noturna. Os pais descontrolados pela pouca sensibilidade exigiam seus dotes para pagar as doses de álcool ou as pedras marrons dos cachimbos malditos. A chuva intermitente traz gosto de desgraça, o cheiro de sangue caminha na reta que desemboca a descarga, a sirene da polícia penetra no mesmo áudio das gotas que aumentam sobre as telhas miseráveis. Lá na Avenida uma das meninas vai atender seu primeiro cliente, a dor que se passa pela cabeça é logo enganada pela nota de pouco valor que é guardada na bolsa. Lá se vai o tesouro de uma tradição familiar, o grito engolido pelo barulho da chuva que aumenta sem regras, do som de um carro que passa sem respeitar os decibéis da placa anti-poluição sonora. De volta aos amontoados de miseráveis nos seus infernos individuais, uma ratazana passeia pelas marquises toscas e não se incomoda. Um senhor de cabelos brancos e uma bengala na mão direita que escora a ausência de uma perna também se mostra frio e na troca de desdém não sai do lugar que estava. Seu semblante fixo parece tentar captar algo, além de tudo aquilo que se move na desconexão daquela pobreza. O pequeno rego que descia tortuoso no meio das choupanas recebe uma enorme e repentina quantidade de água. O ruído em meio a tanta miséria oculta de um estampido de revolver trinta e oito. Um corpo cai, outro avança na chuva que já é tempestade e desaparece com um crime na ficha, mais uma morte. A enxurrada traz uma bola que saltita em cada percalço, insistente bate e volta se equilibrando na água suja. Um garoto de pé no chão e aproximadamente nove anos fuma um baseado sem preocupação, vendo a bola inquieta que bate e rebate por onde passa e entra na disputa com a correnteza marrom. Um salto daqui outro dali, e a bola encontra um corpo boiando sem compromisso algum, ela bate na cabeça do defunto e vai para as mãos do garoto, que faz um sinal de positivo olhando o corpo descer a correnteza. A tempestade vai baixando seu volume suas pernas grossas vão afinando, o turvo horizonte se abre e as pessoas deixam seus antros, sirenes de Bombeiros cercam o aglomerado na tentativa de salvar quem resistiu, o rabecão cata os corpos e a polícia faz o boletim. Aquela menina desce do carro do cliente e mastiga um chiclete com sintomas de embriaguez. O garoto fumou outro baseado e correu para o campinho improvisado com a bola na mão.