TRABALHO DE ESCOLA

O mundo se transformou quando completei treze anos. Gozava de respeito de pais, familiares e conhecidos, a diretora da escola reconhecia minhas qualidades, mas, na prática, por um desses mecanismos que infestavam as cabeças nesse período, minhas notas começaram a despencar. Até mesmo em matérias como inglês, português e matemática, com as quais desde sempre me dei bem, minhas médias variavam entre dois e cinco. Sem recursos para esconder de meu pai as notas vermelhas que pululavam o boletim.

Provas finais de ciências, geografia e educação artística. Provavelmente ficaria pendurado em inglês, contudo a professora, conversando comigo ao fim do recreio, sentenciou nova chance desde que, dali a uma semana, sem rodeios e de maneira séria, assumisse o compromisso de entregar trabalho sobre o conteúdo do primeiro e do terceiro bimestres além de redação de trinta linhas.

Pelo menos de inglês meu couro salvava-se de levar cacetadas corretivas. No fim de semana, peguei as apostilas da escola, livros do curso que freqüentava duas vezes por semana, anotações avulsas. Uma hora e meia depois, o trabalho impecável – folhas coloridas, desenhos bem articulados e capa repleta de flores de campo – repousava na minha escrivaninha para, na terça-feira, depois do intervalo, colocar nas mãos da professora.

Arrumei minha mesa, abri a gaveta e coloquei o trabalho lá dentro, protegido por um plástico, fechado cuidadosamente com grampo. Limpei o guarda-roupa, encontrei um compasso e duas réguas antigas, uma caixa de lápis de cor, um caderno de desenhos meio amarrotado. Tive saudades do tempo de quarta-série. Instintivamente abri a última página, espalhei os lápis na mesa, comecei a desenhar um coração e, mesmo mal acabado, identifiquei o motivo de meus devaneios, a causa de minha desatenção e a resposta de minhas concentrações nos últimos meses: Lara.

Lara transferira-se de escola militar do Rio de Janeiro. O pai dela, oficial da Marinha, recebera a designação de trabalhar no Porto de Presidente Epitácio, mas optou pela instalação da família em Presidente Prudente. Apesar de vagar pelos bancos da sétima série, pensava numa maneira de romper os limites de idade e de convivência de grupo para me aproximar daquela morena de dentes perfilados que terminava o terceiro colegial. Ainda não tivera coragem de declarar meu amor. Riscava alguns versos na contra-capa de meus cadernos. Os professores acreditavam que eu estivesse anotando assuntos relacionados às disciplinas quando, na prática, escrevia acrósticos inspiradores.

Dias e mais dias, lendo, relendo, escrevendo e inventando poesias com o nome da garota de meus sonhos, de meus devaneios, de meus desejos e de minhas vontades. Bastava uma folha de guardanapo de lanchonete de beira de calçada flanar no vento para iniciar versos de homenagem a Lara.

Justamente escrevia versos para a menina de meus sonhos, sentado no banco improvisado de ponto de ônibus, quando uma sombra se fez em minha frente. Ergui os olhos. Lara sorria: - Você não estuda na mesma escola que eu? Gelei, a respiração descompassada prejudicou a articulação de alguma frase de imediato. Conversamos por cerca de vinte minutos até eu perder minha condução e o ônibus dela com destino a Indiana interromper meus momentos de regozijo.

Entrei em casa apressadamente, tranquei-me no quarto, recusei o jantar – minha mãe batendo à porta de cinco em cinco minutos até se entreter com as novelas – e me pus a desenhar corações, olhares, bocas, lugares para onde viajaria com Lara. Poderia ser Indiana, Teodoro Sampaio, Álvares Machado ou, quem sabe?, Presidente Epitácio. Tempos depois, embarcávamos num cruzeiro que visitava Inglaterra, Portugal, Espanha, Grécia e Itália. Seguíamos de trem para Rússia, Suíça e França. Comecei a cochilar. Agendei-me mentalmente: dia seguinte, pegaria a bolsa, a bola de futebol, o agasalho para devolver à minha prima, a roupa de educação física e o trabalho de inglês.

Adormeci sobre a mesa. Dia seguinte, minha mãe gritava: meu pai sairia em cinco minutos. Vesti a camisa ao avesso, troquei as cores das meias, saí correndo com os sapatos na mão. Recolhi os objetos de minha lista mental: bolsa, bola de futebol, agasalho, roupa de educação física.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 2 de dezembro de 2011.