NEGRO BIDA

Negro Bida surgiu um dia lá na fazenda de meu tio, vindo não se sabe de onde, e foi ficando, fazendo pequenos serviços e zelando para que o fogo de chão ficasse sempre aceso no galpão. De seu, tinha um zaino ainda garboso, uma camisa surrada e uma bombacha encardida e cheia de remendos. Os cabelos já tordilhos e o caminhar meio arqueado davam um claro sinal de que já passara dos oitenta há muito tempo. Isso nem ele mesmo sabia, criado que fora ao deus dará, vivendo de favores desde pequeno e se aquerenciando aqui e ali por um prato de comida e um pelego para descansar o corpo frágil e alquebrado pela lida bruta e pelo rigor das invernias.

Quando não estava cuidando de alguma pequena tarefa , ficava sempre lá pelo galpão, agachado como um bugre ao lado do fogo, ensimesmado, pitando um interminável cigarro de palha cuja fumaça seguia com o olhar parecendo evocar lembranças de lugares e tempos que só ele conhecera.

Mas também gostava de uma prosa e sempre que eu chegava da cidade se enchia de entusiasmo, colocava um pelego em um cepo que fazia de banco e me convidava para um chimarrão que cevava enquanto esquentava a água em uma cambona preta e enfumaçada. Então eram histórias de domas e gineteadas que fora domador e dos bons, de peleias e entreveros em carreiras de cancha reta e em bailantas de campanha quando até algumas cicatrizes mostrava como fossem medalhas e atestados de sua bravura.

Como eu aparecia por lá apenas muito raramente, duas ou três vezes por ano, no máximo, era de se ver a alegria com que me recebia, talvez por que já não lhe dedicassem a mesma atenção que eu, ou, quem sabe, por ver em meus olhos o desejo atávico de registrar na memória todas as histórias de amor às coisas da terra, de coragem e honra que ele sempre tinha para me transmitir.

Nessas ocasiões, como de costume, minha tia perguntava o que eu queria almoçar, já pronta para matar uma galinha e fazer com arroz ou escolher um charque para um ensopado com mandioca que era uma receita muito particular sua. Já o meu tio sugeria um espinhaço de ovelha e de sobremesa um mogango cozido para comer com leite ou com coalhada. Já sabiam eles, no entanto, que meu primeiro almoço era lá no galpão com o Negro Bida. E o prato era sempre o mesmo: um arroz de carreteiro bem gordo feito em uma panela que há muito não era lavada ( apenas ensebada depois do uso para não enferrujar).

Quanto orgulho sentia o preto velho em ver o moço da cidade comendo ali no galpão, num simples prato esmaltado, aquela comida que ela fazia com a rusticidade dos campeiros antigos, sem luxo, sem maiores cuidados mas com uma pitada da sua enorme generosidade e o tempero insubstituível do seu afeto e admiração.

Os anos passaram. Meus tios foram para a cidade e o velho Bida ainda ficou por lá, meio caseiro, meio capataz, solito ao lado do fogo, defumando suas lembranças e ausências. E um dia, discretamente, assim como chegara, nos deixou. Tenho certeza que foi morar em alguma estrela dessas que brilham na madrugada ou, talvez, ande aí por esses campos galopando em seu zaino e repontando alguma tropilha de xucros, indomáveis como ele.