Natais de infância feliz

Cada vez que a folhinha* pendurada na parede da cozinha parecia uma flâmula ao sabor no vento, meus sentidos  alertavam: é dezembro, o Natal está chegando!.
Imediatamente sinto com esta lembrança, contrações e saltos cardíacos, suores estranhos, invasivos pensamentos e saudades sem fim.
E o dia 24, queira eu ou não, está a balançar o cadeado do portão, a  tilintar o mensageiro do vento na varanda, a fazer de pêndulo o sino da porta.  Tudo bate, tudo grita, tudo geme.  O relogio antigo badala mais forte, parece  gritar, parece bater 24, 32 vezes a cada hora. E o que seria um dia (por tradição) de alegria, - porque comemoração de aniversário -, vai acontecendo como um sombra pairando sobre a casa, como enxurrada forte depois de um temporal.  Porque lembranças muitas vezes são tristes; raramente elas surgem  como ciranda de crianças, trazendo alegrias sepertinadas.

Não digo que seja uma tristeza que abala, mas uma alegria que entristece. A maioria dos(as) personagens já fizeram a grande viagem e a saudade chega doendo, inevitavelmente.

Lembro que tudo começava no dia 23.
Baldes de água  para lavar a casa de piso exagonal, rústico,  difícil de clarear, porque não eram uniformes: um era branquinho, outro amarelado, outro avermelhado, outro torradinho. Mas depois de toda a casa lavada ficava no ar um bom cheirinho, desse de terra molhada. Toalhas e colchas que a avo Yayá tirava de um grande bau e mandava que a lavadeira engomasse, eram colocadas para pegar o cheiro do sol; bordadas com rechilieu, bainhas abertas, vagonite e outros pontos difíceis de entender como foram feitos. Depois iam para as mesas e as camas. Tudo branco, tudo com cheiro de flor.
No rádio, Sinos de Belém o dia todo que Deus deu.
Primos  e primas corriam no quintal de lá para cá sem saber ao certo o que deviam fazer. A excitação não nos deixava brincar como de costume. Esperávamos Papai Noel que chegaria na madrugada e, por mais que quiséssemos manter nossos olhinhos abertos, eles adquiriam uma cola ciliar e era a noite mais bem dormida do ano. Nada ouvíamos  ou víamos, por mais que quiséssemos flagrar o Velho de Barba Branca.

Faziamos planos, sonhávamos com bicicletas, bonecas grandes, carros  que pareciam, de verdade, fogões e panelas iguais ao  das casas dos ricos, porque o nosso era a carvão.

Casa pronta. Um galho seco de uma árvore  era coberto de algodão; e o algodão salpicado de papel de seda verde picadinho; uma planta em um caqueiro também podia ter serventia.
Uma coisa ou outra seria a árvore no canto da sala ou no centro da mesa. Algumas raras bolinhas compradas pelo nosso pai-avô e caixas de fósforo cobertas com papéis bonitos que colecionávamos desde o início do ano, eram trêmula e cuidadosamente penduradas.
A  neve era cordas fininhas de algodão que enrolávamos nos galhos; e a estrela lá em cima, de papelão, coberta de areia  dourada. Uma das pontas sempre era desigual, mas era  a representatividade cósmica presente. Tudo pronto.
Não havia ceia, comiámos um pacotinho de frutas cristalizadas, bebiamos Crush ou Coca Cola e lambíamos os beiços.
Depois era esperar o amanhecer.
Às quatro, cinco horas estávamos de pé com a revoada de passrinhos trazendo nos bicos um filete de claridade em forma de melodia.

A árvore era para enfeitar, porque os presentes eram deixados ao pé da cama de cada um. Elas eram vitrines com embrulhos expostos.
Osol  invadia a casa. Os olhos nem eram lavados. Papéis rasgados sofregamente e... decepção momentânea. Cadê a bicicleta?  o carrinho que andava sozinho?  a  bolsa nova, a boneca que fecha e abre os olhos,a bola de couro ? o trator?  Não tinha nada disto.
- Não deu para Papai Noel trazer, dizia  nosso avô
- São muitas crianças, reforçava minha avó.
- Quem sabe ano que vem, consolava-nos minha mãe.
Mas a esta altura já nem estávamos ali, corriamos para o quintal  segurando com carinho que recebemos. Totalmente diferente do que sonhamos, mas nem ligávamos para isto.
Era Natal,  e íamos brincar felizes, corações  uníssonos como parada militar, tambores rufando, coros de anjos . 
Década de 60. Éramos tão felizes que não dá para acreditar. 
Afinal de contas, as coisas mudam; se para melhor ou para pior, só os corações sabem.
Bom Natal, um Feliz Natal pra você... prá você, para nós, para todos.


* Calendário em forma de grandes folhas com gravuras. uma para cada mes. que eram destacadas ao final de cada um.


imagem:eedrvicente rizzo